
correr. durante muito tempo, eu fui o cínico de plantão. o cara que ria das multidões vestidas em cores absurdas, trotando como se fossem salmões nadando rio acima, só que em pleno asfalto quente. achava tudo uma grande piada. pagar para sofrer? para suar? para receber uma medalha que parece saída de um brinde infantil e, como recompensa final, uma banana mole? eu assistia àquilo de longe, com o olhar crítico de quem acreditava que correr só fazia sentido se você estivesse fugindo de algo – ou de alguém.
mas aí eu corri. só uma vez, só para provar que estava certo, que era uma idiotice. o problema? eu gostei. não imediatamente. no início, foi como bater a cabeça contra uma parede e descobrir que o barulho era meu ego rachando. mas então, lá pelo terceiro ou quarto quilômetro, alguma coisa clicou. o barulho da cidade sumiu, minha mente entrou numa espécie de transe, e, de repente, não havia mais nada além do ritmo das passadas e o som da minha respiração. foi insuportavelmente difícil – e, de alguma forma, glorioso.
em pouco tempo, fui fisgado. comecei pequeno, como todos começam, mas logo estava devorando quilômetros como se fossem aperitivos. provas de 10k se transformaram em meias maratonas, que rapidamente viraram maratonas inteiras. antes que eu percebesse, estava mergulhado no insano mundo das ultras. longas distâncias em trilhas perdidas, onde você não corre apenas contra o tempo, mas contra a natureza, o corpo e sua própria mente. não era mais um esporte, era uma obsessão. cada treino, cada dor, cada gota de suor se tornava parte de algo maior. eu me sentia invencível.
até que não me senti mais. porque correr, quando vira obrigação, te consome. o que antes era um desafio empolgante se transformou em mais um item na lista de coisas que eu tinha que fazer. os treinos começaram a parecer castigos. e eu? eu simplesmente parei. larguei tudo. nem me despedi. guardei os tênis, deletei as planilhas e voltei para um ritmo de vida mais humano – o tipo que envolve menos quilômetros e mais longas noites com um bom prato e um copo na mão.
mas a corrida tem um jeito estranho de permanecer em você, mesmo quando você acha que a deixou para trás. às vezes, sem aviso, me pego olhando para uma rua longa e vazia e penso: “e se eu corresse de novo?”. não pela medalha, não pela glória. mas por aquela sensação impossível de descrever, aquela breve suspensão da realidade que só aparece quando você está completamente exausto, mas ainda assim segue em frente.
então, aqui estou eu, considerando voltar. pensando em tirar o pó dos tênis e sair para a estrada mais uma vez. mas desta vez, sem metas absurdas, sem obsessões. só eu, correndo, como antes. pelo simples ato de colocar um pé na frente do outro, sentindo o mundo diminuir enquanto o som das passadas preenche o silêncio. quem sabe? talvez ainda haja algo para descobrir nessa estrada.
mas, antes de amarrar os cadarços e voltar para esse mundo de dores musculares e bolhas nos pés, tem uma questão que não sai da minha cabeça: será que vale a pena? porque, veja bem, a corrida tem um jeito cruel de te iludir. no começo, ela é simples, quase inocente. um trote leve pela manhã, um vento fresco no rosto, e você se convence de que encontrou a resposta para todos os problemas da sua existência. mas, antes que perceba, está inscrevendo-se em provas, ajustando planilhas, pesquisando tênis com mais tecnologia do que um carro de Fórmula 1. e, claro, se achando superior ao resto do mundo.
e eu já vivi isso. já encarei subidas intermináveis, trilhas enlameadas, calor de 40 graus, tudo em nome de uma glória que – sejamos honestos – dura o quê? 15 minutos, talvez. você cruza a linha de chegada, exausto, à beira do colapso, e por um instante sente que conquistou o mundo. só que o mundo não dá a mínima. ele continua lá, indiferente, enquanto você tenta fingir que a medalha de participação pendurada no pescoço é algum tipo de troféu de guerra.
mas, por outro lado, a corrida tem aquela mágica estranha. ela te lembra que o corpo humano é uma máquina extraordinária – e que a mente, quando quer, pode ser ainda mais poderosa. há algo quase terapêutico em enfrentar aquele quilômetro interminável, onde tudo em você está gritando para parar, mas, de alguma forma, você continua. talvez seja isso que me atrai. não o ato de correr em si, mas o desafio de enfrentar algo que, no fundo, não faz o menor sentido. porque se há uma lição que a corrida ensina é que a vida raramente faz sentido, mas você segue em frente mesmo assim.
então, vou voltar? ainda não sei. talvez eu precise de mais um café para decidir. talvez eu esteja só romantizando algo que, no fundo, é uma forma muito bem organizada de autoflagelação. mas também sei que, se eu calçar os tênis de novo, vou sentir aquela velha faísca. o asfalto ou a trilha diante de mim, o coração disparado, o som das passadas marcando o tempo. e naquele momento, nada mais vai importar. não o passado, não o futuro, não as dúvidas. só o próximo passo. sempre o próximo passo.
e, honestamente? acho que é disso que a gente está atrás. não da linha de chegada, não das palmas, não do número de quilômetros acumulados. mas daquele instante raro e precioso em que o mundo inteiro desaparece, e tudo o que resta é você, correndo.