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2024

fobia social

engraçado como o palco – esse espaço onde todo mundo acha que você tá sendo dissecado por mil olhos críticos – é, na verdade, o único lugar onde eu me sinto realmente no controle. me dá um microfone, acende as luzes, e lá vou eu. as pessoas podem até me fazer perguntas – e claro que algumas vão ser idiotas, sempre tem uma alma que quer ser esperta demais –, mas eu ainda mando no jogo. sou eu quem decide como responder, se é com sarcasmo, provocação ou uma anedota inventada na hora. no palco, tudo gira em torno de mim. é um terreno que conheço bem. ali, eu domino o show.

mas tira o palco, o público, o microfone, e me joga numa situação simples, corriqueira, como estar num táxi sozinho, e a coisa muda de figura. não é sobre o motorista. eles só estão fazendo o trabalho deles, girando o volante, indo de um ponto a outro. é sobre o ambiente, a sensação de estar preso num cubículo em movimento com outra pessoa – um estranho, pra piorar. a intimidade desconfortável de compartilhar aquele espaço fechado onde o som da respiração, do piscar dos olhos e do ronco do motor parece ensurdecedor. a qualquer momento, pode vir uma pergunta. qualquer pergunta. e é sempre a pior coisa: “pra onde vai?”, “choveu hoje?”, “você trabalha com o quê?”. algo inofensivo, mas que se transforma em um teste de sobrevivência social. porque agora sou eu, sem a proteção do palco, sem holofotes pra apagar os rostos. só um cara, sentado ali, tentando parecer normal enquanto minha mente grita: “só me deixa existir em paz”.

é por isso que meu ipod e meus óculos escuros são mais do que acessórios. são ferramentas. estratégias de fuga. os fones me isolam, criam um universo paralelo onde não existem perguntas, nem respostas, nem olhares. e os óculos? minha barreira contra o contato visual – essa invenção humana que parece tão simples, mas que carrega toda a carga de “me nota, me entende, me enfrenta”. com eles, eu me torno algo distante, quase intocável. porque sem esses escudos, eu fico exposto. e o táxi, de repente, vira um palco invertido onde eu sou o único a ser observado.

e na rua? a rua é outro inferno disfarçado de normalidade. andar entre estranhos, sem um destino claro, é como nadar em águas infestadas de tubarões que só existem na sua cabeça. os olhares não são reais, mas, ao mesmo tempo, são. cada rosto que passa parece me escanear, me pesar, me medir. é como uma performance contínua, sem aplausos, sem fim. e eu não baixo a cabeça. não desvio. mas não porque sou confiante – é puro ato, uma máscara que coloco pra passar por aquilo sem que ninguém perceba que dentro de mim tá tudo desmoronando. os fones e os óculos me ajudam a fingir que não dou a mínima, que tô num mundo só meu. e talvez até esteja.

a academia, então? o teatro do ridículo. um lugar onde o som de pesos caindo e máquinas rangendo se mistura com o esforço coletivo de todo mundo fingir que tá ali só pra ser saudável. ninguém tá. todos estamos ali pra evitar a decadência, física ou social, mas sem nunca admitir isso. e claro, sempre tem alguém que quer falar. “quantos quilos você tá levantando?”, “tá focado na dieta, hein?”, “qual teu objetivo de treino?”. qual meu objetivo? não surtar. não ter um colapso no meio de uma série porque alguém resolveu que academia é lugar de socializar. mas não posso dizer isso, então sorrio, murmuro algo genérico, e volto pra minha bolha mental, planejando sair dali o mais rápido possível.

no fim, o palco é fácil porque é meu. ali, eu decido quem entra, quem fala, quem cala. mas na vida real, meu controle é emprestado, precário, dependente de dois pedaços de plástico: óculos escuros e um ipod. eles são meu escudo, meu sinal universal de não me foda, minha última linha de defesa contra o mundo. mas mesmo com eles, o mundo insiste. ele fura a barreira, ignora os sinais, força uma interação, um olhar, uma pergunta idiota. e é aí que a verdade dói: meu controle é só isso – um par de óculos e um pouco de música. tira isso, e eu tô à mercê de tudo o que tento desesperadamente evitar.