
ler a divina comédia hoje em dia é quase um ato de resistência. um gesto de pura teimosia intelectual em um mundo que se entrega à superficialidade com o entusiasmo de um turista embriagado em cancún. enquanto tudo ao redor se dissolve em tiktok de dez segundos e análises políticas do tamanho de um tweet, dante nos convida a uma jornada que exige paciência, estômago e um leve desprezo pela gratificação instantânea.
vamos ser honestos: poucos têm coragem. a maioria se contenta com resumos vagabundos ou alguma thread pretensiosa no twitter explicando como o inferno é só uma grande metáfora para a opressão do sistema. dante, coitado, se revira no túmulo toda vez que alguém reduz sua obra-prima a um post de instagram com uma citação mal traduzida.
mas eis o motivo pelo qual essa leitura é mais do que essencial hoje: vivemos tempos infernais. só que, ao contrário do inferno de dante, nosso submundo contemporâneo não tem estrutura, lógica ou uma hierarquia bem definida de punições. o que temos é um pandemônio caótico onde influencers vendem criptomoedas duvidosas enquanto políticos falam em nome de deus para justificar atrocidades. se dante vivesse hoje, o décimo círculo do inferno seria reservado para negacionistas, coachs motivacionais e vendedores de cursos online que prometem riqueza em três meses.
e o purgatório? bom, essa talvez seja a parte mais atual da obra. um lugar onde as almas penam para se livrar de seus pecados e evoluir espiritualmente. soa familiar? o purgatório é basicamente o que chamamos de “desconstrução” nos tempos modernos. uma jornada dolorosa, cheia de culpa e autoflagelação, onde todos tentam provar que são pessoas melhores do que foram ontem. só que, ao contrário do que dante imaginou, nossa sociedade não permite redenção de verdade… só linchamento público e cancelamento seletivo.
e por fim, o paraíso. será que ele ainda existe? ou será que o sonho de um mundo justo, belo e equilibrado foi sequestrado por gurus de autoajuda e palestrantes que dizem que a felicidade é só uma questão de mindset? se o inferno é caótico e o purgatório um tribunal moral perpétuo, talvez o paraíso moderno seja um condomínio fechado para os privilegiados, onde ninguém se preocupa com a fome, a desigualdade ou as catástrofes climáticas, desde que haja um bom sinal de wi-fi.
no fim, ler a divina comédia hoje é um exercício de sanidade. é um lembrete de que o mundo sempre foi cruel, absurdo e recheado de hipocrisia. dante nos deu um mapa do inferno, mas pelo menos nos deixou claro que o sofrimento pode ter poesia, que a jornada pode valer a pena e que, no final, talvez, só talvez, haja alguma luz esperando por nós. nem que seja só a luz de um abajur velho, enquanto terminamos o último canto e percebemos que, de todas as coisas infernais do nosso tempo, a pior delas é viver sem tentar entender um pouco mais.