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2024

precisamos conversar

precisamos conversar. sobre algo que ninguém tem coragem de admitir porque, se admitisse, teria que lidar com a consequência devastadora de perceber que talvez nada em si mesmo seja realmente autêntico. teria que olhar no espelho e encarar a possibilidade de que, ao longo dos anos, foi se tornando apenas uma cópia reciclada de outras pessoas. um remix de influências, um eco de vozes alheias, um frankenstein cultural montado a partir de pedaços roubados de gente que, por algum motivo, você admirou, invejou ou simplesmente quis impressionar.

não precisa se ofender. não é só você. na verdade, essa talvez seja a condição natural do ser humano: absorver, imitar, regurgitar. ninguém nasce com identidade própria. desde o primeiro dia, somos moldados pelo olhar dos outros, pelo que nos dizem que é certo, bonito, desejável. aprendemos o que é engraçado com alguém que riu antes de nós. adotamos gostos musicais porque, em algum momento, quisemos pertencer a um grupo. desenvolvemos opiniões não porque paramos para pensar de verdade, mas porque lemos ou ouvimos alguém articulá-las primeiro e pensamos: “é, isso faz sentido.” pronto. mais um tijolo no edifício da personalidade emprestada que chamamos de “eu”.

mas chega um momento em que a máscara começa a rachar. porque, no fundo, algo sempre parece um pouco… errado. uma desconexão. uma sensação incômoda de que, por mais que você tente, nunca se sente completamente confortável dentro da própria pele. e então você compensa. busca distrações, mergulha em entretenimento constante, se cerca de barulho para não ter que encarar o silêncio aterrorizante da pergunta: o que em mim ainda é realmente meu?

você já se perguntou isso? alguma vez na vida? já parou para pensar no quanto das suas preferências, opiniões, até seus trejeitos, são realmente espontâneos e não apenas um reflexo bem ensaiado do ambiente ao seu redor? já considerou a possibilidade de que, ao invés de ser um indivíduo único e original, você pode ser apenas um produto do que consumiu, das pessoas com quem conviveu, das tendências que, consciente ou inconscientemente, seguiu?

e o mais cruel é que o mundo moderno transformou isso em um processo automático. antes, você precisava ao menos conviver fisicamente com alguém para começar a absorver seus maneirismos. agora? um algoritmo faz o trabalho para você. ele sabe exatamente o que te mostrar, como moldar suas reações, como alimentar sua indignação, seu desejo, sua nostalgia. você se acha esperto, acha que tem controle sobre suas escolhas, mas seu feed já decidiu por você. seu humor da manhã foi ditado pelo primeiro post que apareceu quando você desbloqueou o celular. sua lista de interesses? ajustada diariamente, sem que você perceba.

e o pior? você gosta disso. gosta porque é confortável. porque ser autêntico de verdade daria um trabalho desgraçado. porque exigir autonomia sobre seus pensamentos e gostos implicaria em questionar tudo o que te trouxe até aqui. e ninguém quer esse nível de desconstrução. é muito mais fácil continuar nesse fluxo previsível, nesse teatro de individualidade onde todo mundo soa mais ou menos igual, pensa mais ou menos igual, se revolta com as mesmas coisas, ri das mesmas piadas, deseja as mesmas experiências.

mas se nada disso te assusta, então talvez já seja tarde demais. talvez o processo já tenha se completado. talvez não exista mais “você”, apenas um compilado eficiente de tendências e influências, um reflexo de tudo ao seu redor, mas sem nenhum resquício real do que, um dia, poderia ter sido uma identidade própria.

então, me diz, agora com sinceridade: o que sobrou em você que ainda é só seu?