Categorias
2024

vietnã

o vietnã não é para os fracos. não é para os paranoicos da higiene, os obcecados por ordem, os turistas de sandália com meia que exigem ketchup no café da manhã. o vietnã é para aqueles que entendem que a vida, a vida de verdade, acontece no meio do caos, na calçada, sob um toldo improvisado, entre buzinas, fumaça de carne grelhando e o olhar severo de uma senhora de setenta anos que julga se você é digno ou não da comida que ela está prestes a colocar na sua frente.

esse lugar tem um cheiro. e não falo do perfume patético dos shoppings de bangkok ou das calçadas limpas e desinfetadas de cingapura. o vietnã tem cheiro de caldo que borbulha há dias, de coentro rasgado na hora, de peixe seco, de gasolina misturada ao ar úmido, de suor de cozinheiro que não tira folga desde 1997. e tudo isso  absolutamente tudo, é maravilhoso. se você não entende isso, lamento, mas sua vida tem sido triste.

comer no vietnã não é apenas um ato de alimentar-se. é um ritual, um pacto silencioso entre o cozinheiro e o comensal. um pacto que diz: eu confio em você para me alimentar, e você confia em mim para comer sem frescura. porque aqui ninguém tem tempo para frescura. você se senta em um banquinho ridiculamente pequeno, suas pernas dobradas como se estivesse praticando uma sessão intensiva de ioga, e aceita o que vier. e o que vier, meu amigo, vai fazer você reconsiderar tudo o que achava que sabia sobre comida.

tome o pho, por exemplo. uma tigela de caldo translúcido e ao mesmo tempo profundo como o oceano, carregado de especiarias e fervido por horas até atingir um equilíbrio que nenhum laboratório de culinária molecular jamais poderia replicar. a carne, cortada finíssima, cozinha no próprio calor do líquido. ervas frescas, pimenta, limão, brotos de feijão, uma sinfonia na boca. e você, suando sob o calor úmido de hanói ou daigon, percebe que nunca comeu uma sopa de verdade até este momento.

e o banh mi? meu deus, o banh mi. um monumento à fusão cultural. os franceses trouxeram a baguete, claro, mas foram os vietnamitas que pegaram esse pão esnobe e o transformaram em algo que humilha qualquer sanduíche ocidental. dentro dele, uma explosão de sabor, carne marinada, patê, picles crocantes, coentro, molho picante. cada mordida é uma aula de equilíbrio. e tudo isso vendido em uma banquinha de rua por um preço que faria qualquer chef de restaurante “artesanal” chorar de inveja.

e depois tem o café. ah, o café vietnamita. ele não pede licença, não se adapta ao seu paladar acostumado a lattes aguados e cappuccinos decorados com coraçãozinhos. ele chega denso, quase sólido, pingando lentamente de um coador de metal, pousado sobre um copo com leite condensado. uma combinação brutal. doce, amargo, forte o suficiente para ressuscitar um morto. não é café para quem precisa de uma dose de energia. é café para quem quer sentir algo.

mas o vietnã não é só comida, apesar de a comida ser um argumento fortíssimo para nunca mais sair de lá. o vietnã é um país que te engole inteiro, mastiga e te cospe de volta para o mundo um pouco mais sujo, um pouco mais suado, e infinitamente mais vivo.

porque lá, a vida acontece de verdade. não tem essa palhaçada de urbanismo gourmet, de cidade feita para quem quer fingir que é cosmopolita enquanto vive dentro de um condomínio-clube com “área instagramável”. o vietnã é cru, é barulhento, é intenso. é um país onde o tráfego desafia qualquer lógica, onde atravessar a rua é um ato de fé, onde motos carregam cargas que qualquer engenheiro diria ser impossível e, ainda assim, ninguém morre. ou pelo menos não o suficiente para desacelerar o fluxo. é o tipo de lugar onde a humanidade ainda tem aquele cheiro de humanidade, suor, óleo de motor, especiarias e carvão queimando.

e a história? você sente ela em cada parede marcada por balas, em cada museu com fotografias que não pedem sua permissão para te mostrar o que o mundo fez com esse país e o que esse país fez com o mundo de volta. os franceses tentaram colonizar o vietnã e saíram chutados. os americanos tentaram “libertar” o vietnã e foram mandados para casa carregando seus mortos, traumatizados, humilhados. o vietnã não se curva para ninguém. você sente esse orgulho em cada esquina, em cada rosto. um orgulho feroz, um orgulho que diz “tentaram nos apagar, mas estamos aqui, e estamos com fome”.

e, meu amigo, isso se reflete na forma como eles vivem. há uma energia ali, um ritmo próprio que não pode ser ensinado em guias turísticos. não existe um “melhor lugar para se visitar no vietnã”, porque o melhor lugar é simplesmente estar lá, se perder, sentar numa praça qualquer e assistir a vida acontecer. um grupo de velhos jogando xadrez vietnamita e bebendo chá forte o bastante para dissolver ferro. crianças correndo sem que ninguém esteja desesperado atrás delas com álcool gel. um barbeiro cortando cabelo no meio da rua, entre um poste de luz e uma motocicleta estacionada.

e então vem a noite. e a noite no vietnã não é feita para quem dorme cedo. as ruas não esvaziam, elas mudam de dono. as barraquinhas de comida ganham um brilho diferente, as lanternas nas vielas transformam cada beco em um cartão-postal, os bares explodem em vida. e se você estiver em hanói, vai acabar bebendo bia hoi, a cerveja mais fresca, mais barata e mais democrática do planeta. servida em copos pequenos, fabricada no dia e consumida até acabar… e sempre acaba. ao seu redor, moradores locais, mochileiros, expatriados, todos compartilhando o mesmo espaço, a mesma bebida, o mesmo pedaço de noite.

e se você for mais fundo, se for além do óbvio, vai encontrar o vietnã que poucos veem. as montanhas enevoadas de sapa, onde tribos locais te recebem sem pose de atração turística. os templos esquecidos na selva, cobertos de musgo, desafiando a passagem do tempo. as praias de areia dourada que fariam qualquer resort caribenho parecer um shopping center lotado.

mas o verdadeiro segredo do vietnã não está em um único lugar. está na forma como ele te faz sentir. porque depois de uns dias ali, você percebe que está diferente. seu paladar mudou, seus olhos enxergam cores mais vibrantes, seu nariz reconhece cheiros que antes passavam despercebidos. você se acostuma a viver sem tanta frescura, sem tanta precaução. percebe que o mundo não precisa ser um lugar asséptico para ser incrível. percebe que há beleza no improviso, no inesperado, no caos organizado de uma cidade onde motos e bicicletas se movem como um enxame de abelhas, cada um sabendo exatamente seu lugar na desordem.

e então chega a hora de ir embora. mas algo dentro de você resiste. porque o vietnã tem esse efeito, ele te pega pela alma e te lembra do que é estar vivo. e quando você volta para sua cidade limpa, silenciosa, eficiente e completamente sem alma, percebe que algo ficou para trás. algo que talvez você nunca mais encontre.