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2024

jornal

abrir um jornal de papel hoje em dia é quase um ato de resistência, tipo acender um cigarro num restaurante vegano ou perguntar onde fica a sessão de carne num mercado hipster. enquanto o resto do mundo acorda e se enfia num transe digital, sendo alimentado por manchetes mastigadas e tendências ditadas por um algoritmo invisível, eu estou aqui, dobrando as páginas de um trambolho impresso, deixando meus dedos sujos de tinta e minha cabeça suja de pensamentos que talvez não me agradem. porque é disso que se trata: enfrentar a realidade sem filtros personalizados, sem sugestões feitas sob medida pro meu gosto. um jornal não quer saber no que eu acredito. ele só me mostra o que está acontecendo, e eu que lide com isso.

as redes sociais são um fast food mental, projetadas pra servir informação do jeito mais rápido, viciante e previsível possível. tudo que aparece já foi escolhido com base no que eu já li, no que eu já cliquei, no que eu já discuti. e qual o resultado? um loop infinito onde eu só vejo versões ligeiramente diferentes do que já penso, só reforçando minhas certezas, só alimentando minha bolha. o jornal, por outro lado, é um prato completo, com coisas que eu gosto e coisas que talvez eu nunca pediria… mas que, no fim das contas, fazem bem. eu começo a ler sobre política, acabo caindo numa história sobre um pescador esquecido no meio do oceano e, de repente, minha cabeça não está mais no mesmo lugar de antes. e isso é bom. porque o mundo não gira ao redor do meu gosto pessoal.

e tem o foco. ah, o luxo da atenção plena. abrir um jornal e simplesmente… ler. sem pop-ups, sem notificações histéricas, sem um vídeo de um idiota dançando logo abaixo da manchete. só a notícia, a matéria inteira, sem cortes, sem interrupções. ler uma reportagem longa no celular é como tentar ouvir um disco clássico no meio de uma festa barulhenta, impossível absorver tudo, impossível se perder na experiência. com o jornal, não tem distração embutida. se eu quiser parar no meio de uma leitura, a interrupção tem que vir de mim, não de uma inteligência artificial desesperada pra me jogar na próxima tendência irrelevante.

e o jornal ocupa espaço. ele está ali, sólido, físico, impossível de ignorar. diferente de um feed que desaparece no instante em que eu rolo a tela, o jornal não some, não se dissolve no ar. ele se impõe. e me força a dar um passo atrás, a processar as informações sem a pressa insana da internet, onde tudo tem que ser consumido rápido antes que outra coisa tome seu lugar. com o jornal, o tempo é meu. eu leio no meu ritmo. e quando termino, ele continua existindo, um lembrete de que a informação real tem peso, tem substância.

e não me entenda mal, eu não sou ingênuo. não estou aqui pra canonizar jornalistas ou fingir que tudo que está impresso num jornal é uma obra-prima de honestidade e profundidade. tem muito jornalista preguiçoso, muito veículo vendido, muita matéria feita na correria só pra preencher espaço. mas pelo menos… pelo menos, o jornalismo ainda exige um mínimo de rigor, uma base de pesquisa, um esforço pra conectar os pontos. é um milhão de vezes melhor do que confiar em prints duvidosos ou numa manchete distorcida compartilhada por algum tio no whatsapp. e, convenhamos, qualquer coisa que faça um trabalho melhor do que uma inteligência artificial gerando notícias automáticas já vale a pena.

porque esse é o problema do jornalismo digital, ele se tornou refém da velocidade. na corrida por cliques, pela viralização, pela manchete mais chamativa, a verdade muitas vezes se perde no meio do caminho. uma reportagem de fôlego, aquela que exige semanas de apuração, não compete com um tweet esperto e venenoso que faz a galera espumar de raiva. mas a verdade, aquela verdade que dói, que incomoda, que não cabe num título de clickbait, ainda está lá, esperando. e geralmente, ela não aparece no trending topics.

e tem um outro detalhe, talvez o mais subestimado, o jornal, ao contrário das redes sociais, não fala comigo. ele não me bajula, não tenta me agradar, não molda as notícias pra me manter confortável. não tem um algoritmo me tratando como um bebê gigante, servindo só as informações que me deixam feliz ou indignado do jeito certo. no jornal, eu leio coisas que talvez me façam mudar de ideia. leio pontos de vista que talvez eu não queira encarar. e sabe o que isso significa? que eu ainda tenho escolha. que ainda posso pensar por conta própria, sem que um software decida qual é a minha opinião antes mesmo de eu terminar de ler.

e no fim das contas, é disso que se trata, escolher entre ser um consumidor passivo, alimentado por um sistema que lucra com a minha previsibilidade, ou assumir o controle da minha própria curiosidade. ler um jornal não é sobre nostalgia, não é sobre fetiche analógico, não é sobre ser hipster e rejeitar tecnologia. é sobre pegar a informação na sua forma mais pura possível, e decidir o que fazer com ela.

e sim, eu poderia simplesmente fechar esse jornal, abrir meu celular e deixar que a máquina me jogue de volta no fluxo infinito de distrações. poderia passar o resto do dia rolando a tela, me sentindo informado sem nunca sair da superfície. poderia. mas, por enquanto, fico aqui, dobrando as páginas, deixando a tinta sujar meus dedos, sabendo que hoje, pelo menos hoje, escolhi algo real.