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2024

um dia

acordo quando acordo. sem despertador, sem notificações me lembrando de coisas que não quero lembrar, sem um aplicativo tentando me convencer de que a primeira hora do dia precisa ser otimizada. levanto, faço café para minha esposa. café de verdade, nada desses crimes mornos e aguados que algumas pessoas chamam de “suave”. ela merece um café decente. eu também. enquanto isso, pego o jornal de papel. sim, papel. aquele objeto ultrapassado que não me pede senha nem me bombardeia com anúncios baseados nos meus últimos cinco segundos de pensamento. folheio, deixo a tinta sujar os dedos, respiro fundo e confirmo que a humanidade segue firme na sua missão de se autodestruir com eficiência, nada novo.

passo a manhã no escritório com meu filho. eu trabalho, ele desenha, escreve, inventa teorias. minha mesa se transforma numa exposição temporária de ideias malucas e obras de arte feitas com papel, tesoura e fita adesiva em quantidades que desafiam a física. entre um e-mail e outro, surgem perguntas que ninguém no escritório teria coragem de fazer. “e se o oceano fosse doce?” “se o silêncio faz barulho, então ele ainda é silêncio?” “o tempo existe mesmo ou é só uma coisa que a gente inventou pra não enlouquecer?”.

no escritório o teatro corporativo. reuniões, e-mails, discussões que parecem importantes, mas que, com um pouco de distância, são só uma sucessão de frases genéricas ditas com convicção. algumas reuniões são úteis. outras são como ficar preso num elevador com gente que adora escutar a própria voz. sorrio, anoto coisas, finjo interesse. faço cara de quem se importa, porque às vezes isso já resolve metade dos problemas.

chega a hora de levá-lo para a escola, e o trajeto nunca é só um trajeto. tem teorias, tem descobertas, tem uma análise detalhada sobre por que algumas palavras soam engraçadas e outras não. discutimos os nomes das ruas, os formatos das nuvens, a melhor forma de construir um foguete com materiais encontrados em casa. chegamos, ele desce com a confiança de um astronauta prestes a pisar num planeta novo. as crianças entram na escola como se estivessem embarcando numa expedição intergaláctica. e, de certa forma, estão.

na hora do almoço, pausa. como com minha esposa, porque trabalhar na mesma região e não almoçar juntos seria um nível de insanidade que ainda não alcancei. almoçar com ela é um momento de sanidade no meio do pandemônio do dia. falamos sobre tudo e sobre nada, e às vezes só ficamos ali, apreciando o raro milagre de uma refeição sem interrupções.

a tarde segue seu curso. mais trabalho, mais reuniões, mais decisões que provavelmente serão refeitas amanhã. em algum momento, escrevo algo, rabisco uma ideia sem objetivo, faço qualquer coisa que não tenha prazo, só para lembrar que meu cérebro ainda funciona por conta própria. então, finalmente, o melhor momento do dia: buscar meu filho.

as crianças saem da escola como sobreviventes de uma expedição ao desconhecido. meu filho já chega falando, e eu escuto como se fosse a notícia mais importante do dia. porque é. tem histórias, tem reviravoltas, tem pequenas vitórias e derrotas épicas. um amigo perdeu a borracha e foi um drama shakespeariano. a aula de circo ele fez um movimento tão impressionante que todo mundo ficou em choque. o recreio foi um campo de batalha onde alianças foram formadas e traídas. cada detalhe é contado com urgência, como se fosse informação confidencial de um dossiê ultrassecreto.

chegamos em casa, e o caos recomeça. desenhos, mais perguntas impossíveis, mais projetos que desafiam as leis da lógica e da arquitetura. a sala vira um campo de experimentação criativa, e eu só observo, fascinado com a liberdade de quem ainda não foi contaminado pelo medo de errar.

à noite, quando conseguimos, assistimos tv. ou tentamos. às vezes a gente dorme no sofá, afogados em travesseiros, cobertores e o peso de um dia vivido de verdade. a festa do pijama oficial da casa. acordamos em horários diferentes, nos arrastamos para a cama sem cerimônia. e amanhã? tudo de novo. ou diferente. não importa. o que importa é que, no meio da rotina, do trabalho, das reuniões sem sentido, sempre tem esses momentos. e esses momentos são a única coisa que vale a pena.