
ah, miss sarajevo… aquela música que, à primeira vista, parecia mais um dos devaneios messiânicos do bono, aquele rockstar que se acha um profeta moderno, mas que, de vez em quando, acerta uma flecha bem no meio do peito da hipocrisia mundial. só que essa não foi apenas uma canção. foi um soco no estômago, um lamento disfarçado de balada pop, um fantasma assombrando as caixas de som com um pavarotti que surge no meio como um espectro operático, implorando por algo que o mundo simplesmente não quer dar a mínima… humanidade.
início dos anos 90. os bálcãs fervendo, sarajevo sitiada, uma cidade cortada do mundo como se fosse um tumor indesejado. ruas esvaziadas pela morte, prédios implodindo como castelos de cartas, corpos largados no asfalto enquanto o ocidente observava de longe, confortavelmente anestesiado. quatro anos de terror absoluto. quatro anos de franco-atiradores apostando quem conseguia acertar mais civis atravessando a rua. e o que o mundo fez? bom, a europa progressista e civilizada tomou um longo gole de seu café expresso, suspirou e disse: “que situação complicada…”
e aí vem o momento mais absurdo e brilhante de todos. um desfile de beleza no meio do inferno. mulheres desfilando entre escombros, segurando cartazes que diziam: don’t let them kill us. porque até mesmo no meio da guerra, as pessoas querem lembrar que ainda são humanas. que ainda podem sonhar, sorrir, ser bonitas, viver. e talvez esse seja o maior insulto para aqueles que lucram com a guerra, a insistência das pessoas em continuar vivas. em não se tornarem apenas estatísticas.
é então que o bono e o brian eno transformam essa insanidade em música. mas não qualquer música. uma canção que começa suave, quase um sussurro, e depois se transforma em um lamento monumental quando pavarotti entra rasgando a realidade com aquele verso esmagador: se ci sarà una vita, vivrò in te. (se houver outra vida, eu viverei em você). e naquele momento, não é mais apenas sobre sarajevo. é sobre todas as cidades que já foram e continuam sendo esmagadas enquanto o mundo finge não ver.
porque, no fundo, miss sarajevo nunca foi apenas uma canção sobre o passado. foi um presságio. uma previsão maldita de que a humanidade seguiria repetindo os mesmos erros com uma precisão quase artística. troque sarajevo por gaza, por quiev, por cabul, por sudão. troque os franco-atiradores sérvios por drones, ataques cirúrgicos, explosões que transformam bairros inteiros em poeira. a guerra virou um espetáculo transmitido ao vivo, com gráficos bem editados e comentaristas explicando as razões geopolíticas como se estivessem narrando uma final de copa do mundo.
e a música pergunta: is there a time for keeping your distance? sim, bono, sempre há. é praticamente a única coisa que o mundo sabe fazer bem. manter distância, fingir indignação calculada, escrever textos profundos enquanto assina mais um contrato bilionário de venda de armas. porque guerras são um grande negócio. e a comoção, essa tem prazo de validade. dura o tempo exato de um ciclo de notícias ou até a próxima tragédia ocupar as manchetes.
is there a time to turn to mecca? claro, mas apenas quando convém. quando serve para dividir, para criar medo, para justificar mais um bombardeio humanitário. sempre há tempo para transformar cultura em arma, religião em desculpa, vidas em números. mas nunca há tempo para reconhecer que, no final, todo mundo sangra do mesmo jeito. nunca há tempo para ver que, em cada cidade reduzida a escombros, há pessoas que só queriam viver.
is there a time to run for cover? bom, para quem pode se dar ao luxo de perguntar, sim. mas e os que não podem? os que morrem soterrados em prédios que nunca deveriam ter sido alvos? os que têm suas casas transformadas em pilhas de concreto enquanto governos bem vestidos chamam isso de “danos colaterais”? esses não têm tempo. nunca tiveram.
e agora, enquanto seguimos repetindo essa dança macabra, a música continua ecoando. miss sarajevo nunca foi um epitáfio. foi um aviso. um tapa na cara do mundo, que, como sempre, ignorou. e aquele verso final, gritado por pavarotti como se estivesse cantando o réquiem da humanidade, se torna um testamento da nossa falha coletiva. haverá outra vida? haverá alguma chance de quebrarmos esse ciclo de carnificina glorificada?
a verdade é que a resposta não importa. porque, no final, sempre haverá um novo sarajevo. um novo gaza. um novo nome para o mesmo horror. sempre haverá políticos chorando lágrimas de crocodilo enquanto assinam mais uma resolução inútil. e sempre haverá música para nos lembrar de tudo o que fingimos não ver. até que um dia, talvez, nem a música reste.
e talvez esse seja o maior medo de todos… o dia em que nem a música reste. o dia em que nem um pavarotti fantasmagórico surgindo do além para cantar sobre a morte e a memória seja capaz de nos arrancar do nosso torpor conveniente. porque se tem algo mais assustador do que a guerra em si, é a normalização dela. a aceitação silenciosa de que o mundo sempre foi assim e sempre será. a anestesia coletiva diante de cada novo massacre, de cada nova cidade devastada, de cada nova criança morta antes mesmo de aprender a falar.
e se sarajevo foi o primeiro ensaio moderno dessa tragédia repetitiva, o que temos agora é o espetáculo em alta definição. não são apenas guerras, são temporadas. conflitos editados como documentários premiados, drones filmando a destruição com a precisão de um diretor de fotografia, explosões se transformando em imagens virais, influenciadores comentando a geopolítica entre um unboxing e outro. é isso. transformamos a guerra em entretenimento, mas sem o final redentor. sem o herói para salvar o dia. sem justiça. só ruínas e uma trilha sonora de lamentações que ninguém quer ouvir de verdade.
is there a time for tying ribbons? sim, sempre há tempo para isso. tempo para símbolos vazios, para campanhas emocionadas que duram uma semana, para bandeiras temporárias no perfil das redes sociais. tempo para discursos inflamados sobre liberdade, democracia e direitos humanos, desde que esses discursos não atrapalhem nenhum contrato de exploração mineral ou venda de armas. porque indignação tem limite, e esse limite é sempre traçado pelo dinheiro.
e então, voltamos àquela imagem inicial. as mulheres de sarajevo desfilando entre escombros, segurando cartazes que imploram por algo tão básico que chega a ser absurdo: não nos matem. uma frase que poderia estar escrita em qualquer muro de qualquer cidade em guerra hoje. e a pergunta que não quer calar: alguém ouviu? alguém ouviu em sarajevo? alguém está ouvindo agora? ou só vamos esperar até que seja tarde demais para fingir que nos importamos?
e é por isso que miss sarajevo continua sendo o epitáfio não apenas de uma cidade, mas de toda uma forma de ver o mundo. um lamento por todas as vidas que poderiam ter sido salvas se a humanidade tivesse um pingo de decência. mas o mundo não aprende. não quer aprender. prefere repetir. prefere assistir. e então, um dia, quando sobrar apenas poeira e cinzas, talvez alguém pergunte: is there a time for asking questions?
mas aí já será tarde demais.