
acabei de ler dez dias que abalaram o mundo, de john reed. e agora estou aqui, olhando para o teto, tentando decidir se acabo de testemunhar um épico revolucionário ou a mais bem escrita carta de amor a uma ilusão. porque reed não só narra a revolução bolchevique… ele a vive, a respira, a devora com uma fome insaciável de história e heroísmo. ele corre por petrogrado como um maníaco com um caderninho, anotando cada discurso, cada barricada, cada grito de ordem como se fosse o evangelho de um novo mundo. um mundo sem patrões, sem exploração, sem injustiça. soa lindo, não? até que a realidade chega chutando a porta e lembrando que toda revolução começa com promessas e termina com uma fila de gente esfarrapada esperando pão, sob a mira de um fuzil.
porque o que reed descreve é eletrizante, sim. petrogrado em outubro de 1917 é um caos em estado puro, uma ópera revolucionária onde operários largam as máquinas, soldados desertam em massa e os bolcheviques, aqueles caras de olhar vidrado e discurso afiado, tomam o poder prometendo que agora, agora sim, o povo está no comando. e reed acredita em cada palavra. ele não é um jornalista, ele é um missionário. lenin e trotsky são seus santos, os sovietes, sua igreja. e a revolução? a salvação.
e eu? eu leio isso tudo com um misto de fascínio e desconfiança. porque a gente já viu esse filme antes, e continua vendo, só que agora com redes sociais, hashtags e influencers de apartamento fingindo que entendem de luta de classes. reed vende a revolução como um espetáculo, e não o culpo. nos primeiros dias, tudo parece grandioso, o palácio de inverno tomado, os ministros do governo provisório presos como ratos em um porão, os sovietes se espalhando como uma febre. parece o triunfo definitivo dos oprimidos. mas revoluções são traiçoeiras. começam com a promessa de liberdade e acabam com uma nova casta no poder, um novo czar, só que agora com um manual marxista na mão e uma polícia secreta mais eficiente.
reed não viveu para ver o que aconteceu depois. morreu jovem, enterrado com honras na muralha do kremlin, enquanto o paraíso proletário se transformava num estado paranoico, onde qualquer um poderia desaparecer no meio da noite por um “desvio ideológico”. a revolução que ele testemunhou foi só o primeiro ato de um espetáculo longo e sangrento. e, no entanto, ele acreditava. acreditava tanto que sua paixão transborda das páginas e faz a gente quase querer acreditar também. quase.
porque a verdade é que dez dias podem mudar o mundo, sim. mas e os anos depois? e os corpos empilhados? e os sonhos despedaçados? essa parte reed não escreveu. e talvez seja por isso que sua história continua tão poderosa, porque ainda queremos acreditar que, de alguma forma, da próxima vez, vai ser diferente.
mas não é diferente. nunca é. porque, por mais que mudemos os nomes, os slogans, as bandeiras, a estrutura do espetáculo continua a mesma. trocamos czar por secretário-geral, depois por presidente vitalício, depois por um CEO de big tech que promete um futuro brilhante enquanto mina os direitos trabalhistas por trás da cortina de néon do progresso. a revolução, nos dias de hoje, não acontece mais nas ruas de petrogrado, ela acontece em threads no x, em vídeos no tiktok, em discursos inflamados no youtube, onde jovens empolgados, que nunca passaram fome e nunca seguraram uma ferramenta de verdade, falam sobre “derrubar o sistema” com um iphone na mão e um starbucks do lado.
reed, se estivesse vivo, teria um milhão de seguidores e seria adorado por metade da internet e odiado pela outra. ele estaria lá, transmitindo direto da linha de frente de alguma nova insurreição, seja em caracas, em hong kong, em porto príncipe, postando fotos borradas de barricadas e tanques na rua, contando histórias de operários insurgentes com a mesma paixão que usou para narrar petrogrado. e, claro, haveria quem o chamasse de vendido, de ingênuo, de idiota útil. porque hoje a revolução não é só armada, é digital. e cada um escolhe a sua trincheira baseado no algoritmo e a bolha que está inserido.
mas, no fim das contas, a questão continua a mesma… quem está realmente no comando? quem realmente ganha quando o sistema cai? porque, assim como em 1917, os discursos podem ser sobre o povo, sobre justiça, sobre um futuro brilhante… mas, em algum lugar, há um pequeno grupo de homens planejando como reorganizar o jogo para que eles continuem no topo. os bolcheviques fizeram isso quando tomaram o poder. as grandes corporações fazem isso quando dizem que querem um mundo mais inclusivo enquanto exploram mão de obra no sudeste asiático. os políticos fazem isso quando dizem lutar pela democracia enquanto assinam acordos que garantem que tudo fique exatamente como está.
dez dias podem mudar o mundo, mas e o décimo primeiro? e o centésimo? e o milésimo? é aí que a poeira assenta, os heróis se tornam burocratas e os sonhos revolucionários viram propaganda estatal. é aí que petrogrado vira moscou, que esperança vira controle, que liberdade vira vigilância. e nós? continuamos esperando pela próxima revolução, como se desta vez fosse ser diferente. como se desta vez a história não fosse se repetir. como se desta vez, finalmente, o povo fosse vencer.
mas a história ri da nossa ingenuidade. sempre riu.