
ser pai de um menino de quatro anos com uma opinião sobre absolutamente tudo é como dividir um apartamento com um crítico de arte mal-humorado e sem filtro. só que esse crítico mede um metro, tem uma fixação irracional por dinossauros e não se intimida em te corrigir na frente de estranhos. você acha que tem alguma autoridade, afinal, você paga as contas e dirige o carro, mas ele não se impressiona. no fundo, você sabe que é apenas um coadjuvante no show dele.
ele acorda com uma tese para defender. não importa o assunto, porque alface deveria ser ilegal, a injustiça de ter que usar sapatos, a suposta conspiração do universo contra ele porque hoje é dia de escola. tudo vem com argumentos apaixonados, expressões dramáticas e um poder de persuasão que faria qualquer advogado experiente tremer. você tenta usar lógica, mas ele opera num plano superior onde lógica é apenas uma sugestão.
o conceito de “não” para ele é o equivalente a um desafio. você diz “não pode mexer nisso”, ele entende “por favor, teste os limites da física e da minha paciência ao mesmo tempo”. e quando a catástrofe inevitável acontece, um copo quebrado, uma parede redecorada com giz de cera, um brinquedo desmontado até a última peça, ele não assume culpa. na mente dele, o verdadeiro culpado é a gravidade, um desenho animado ou, na pior das hipóteses, você, por ter permitido que o mundo fosse assim.
alimentação é um campo de batalha. um dia ele ama banana, no outro, banana é ofensiva. ele implora por um prato que você finalmente faz, só para declarar, no momento em que você serve, que “não gosta mais”. tentar negociar com ele é como tentar convencer um chef de cozinha premiado a colocar ketchup na lagosta. ele tem princípios e não está disposto a comprometê-los por conveniência.
vestir-se? outra guerra. você pode escolher a roupa mais confortável e apropriada, mas se não estiver de acordo com a visão estética dele para aquele dia, esqueça. “eu que decido!” ele brada, enquanto insiste em usar uma fantasia de super-herói para o mercado ou um pijama no meio da tarde. você, que já teve ambições de bom gosto e ordem, agora só quer sair de casa sem um colapso épico na porta.
as perguntas são intermináveis e, pior, altamente filosóficas. “por que o céu é azul?” é fichinha. ele quer saber coisas como “quem decide o que é real?”, “se formiga tem nome?”, “por que adulto pode fazer tudo e criança nada?” e, claro, “se eu gritar bem alto, alguém no espaço ouve?” você se vê sem respostas, tentando lembrar onde foi que sua vida se tornou um episódio de um debate existencialista conduzido por um baixinho com as mãos sujas de chocolate.
dormir é um conceito abstrato. ele pode estar exausto, olhos semicerrados, tombando para o lado, mas na hora de ir para a cama, renasce com energia de quem acabou de tomar um café expresso. “não tô com sono!” diz, enquanto boceja e pisca devagar. negociar a hora de dormir envolve técnicas de diplomacia que nem as nações unidas dominam. no fim, você já nem liga se ele dorme na cama ou no tapete, desde que o silêncio finalmente reine.
você descobre que é fisicamente impossível sentar-se para um momento de paz sem ser interrompido por um “pai, olha isso!” seguido de uma demonstração detalhada de como ele consegue pular de um móvel para o outro sem “tocar no chão de lava”. café quente? utopia. ler um livro? ilusão. ir ao banheiro sozinho? um privilégio que você já nem lembra como é.
mas então, do nada, ele vem e encosta a cabeça no seu ombro. te abraça forte. fala que te ama, que você é o melhor pai do mundo. e você percebe que, apesar do caos, da bagunça, dos argumentos sem fim, você jamais trocaria isso por nada. porque, no fundo, esse pequeno ser humano está te ensinando muito mais sobre paciência, criatividade e amor incondicional do que qualquer livro ou guru da paternidade jamais ensinaria.
e assim você segue. cansado, com olheiras que fariam um sobrevivente de apocalipse parecer descansado, cercado por brinquedos que misteriosamente se multiplicam pela casa como coelhos em plena primavera. você já não luta contra o caos, só tenta sobreviver a ele. talvez, um dia, encontre sua dignidade no meio daquela pilha de bonecos decapitados e carrinhos sem rodas.
mas até lá, você se resigna ao fato de que seu café será sempre morno, que ele não te chama de “pai” pois considera chato, e qualquer tentativa de silêncio será imediatamente sabotada por um grito histérico sobre algo crucial, como a posição errada de uma meia ou a descoberta de um inseto na varanda. você não é mais um indivíduo, é uma espécie de assistente pessoal de um ditador em miniatura, um ditador adorável, sim, mas ainda assim, implacável.
e pensar que um dia você teve ambições. sonhos. vontade própria. agora, sua rotina é construída em torno das preferências de um pequeno imperador que acredita piamente que o mundo gira ao seu redor e, de certa forma, gira mesmo. porque, no fim, você não manda mais nada. você só paga as contas e dirige o carro.