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2024

racismo

eu nunca fui de futebol. nunca. pra mim, sempre foi um bando de caras correndo atrás de uma bola, enquanto um estádio lotado gritava como se o resultado de um jogo fosse determinar o destino da humanidade. eu estava fora disso. completamente alheio. futebol era a obsessão dos outros, não a minha. até que um dia, eu virei pai.

e quando você vira pai, descobre que certas escolhas já não são mais suas. porque seu filho descobre o futebol. e, de alguma forma inexplicável, sem nenhuma influência familiar, sem nenhum primo mais velho empurrando uma camisa velha pela cabeça dele, sem nenhuma tradição embutida, ele escolhe torcer para o palmeiras. palmeiras. um time que nunca teve cadeira cativa nas conversas de domingo da minha família. que nunca foi assunto no boteco da esquina. e, de repente, lá estava eu, assistindo os jogos, torcendo, gritando na frente da tv.

mas aí, vem a realidade. aquela realidade feia, suja, violenta, que insiste em nos lembrar que o futebol, como o mundo, não é um lugar bonito pra todo mundo. aquela realidade que chutou a porta do estádio e escancarou o que sempre esteve lá, mas que muita gente finge não ver, o racismo. porque no último jogo da base do palmeiras, um garoto negro foi chamado de macaco. não só chamado. a torcida adversária fez gestos, imitou um macaco, escancarou a podridão de sempre, sem medo, sem vergonha, sem qualquer receio de punição. porque sabem que punição, quando se trata de racismo, é um conceito flexível.

e eu assisti isso. e me veio um ódio ancestral, um nojo, um enjoo. porque não é só um xingamento, não é só uma provocação de arquibancada. é um sintoma. é a doença crônica da sociedade gritando em alto-falante no meio do estádio. é um lembrete de que, por mais que tentem vender o futebol como um espetáculo global, como um símbolo de união, no final das contas, ainda tem gente que só aceita jogadores negros no campo quando eles estão ganhando. quando perdem, quando erram, quando simplesmente existem na camisa errada, viram alvo.

e não é um problema do futebol. o futebol só amplifica o que já está aí, podre e escorrendo pelas rachaduras do sistema. porque quando o homem mais rico do mundo decide que o policial que esmagou george floyd contra o asfalto merece uma pena menor, o que isso ensina pras pessoas? quando outro bilionário resolve que o melhor a se fazer é reduzir a moderação nas redes sociais, facilitando que discurso de ódio, racismo e extremismo se espalhem sem barreira, o que ele está dizendo? quando um presidente remove todo o calendário de datas em apoio à população negra e um dos maiores mecanismos de busca do planeta, sem questionar, acata a ordem e apaga tudo, o que isso significa?

significa que o racismo não só sobreviveu, mas ganhou um puta megafone. que ele não se esconde mais em sussurros, em piadinhas de mau gosto na mesa do bar. ele está na televisão, nas redes sociais, nos discursos, nas bancadas do congresso, nas arquibancadas. ele está sendo defendido como “liberdade de expressão”, como se ser racista fosse uma questão de opinião, um direito constitucional, e não uma merda criminosa.

e assim, a coisa se espalha. porque se um bilionário pode relativizar a execução de um homem negro nos eua, se outro pode desmontar os filtros que impedem que ódio circule livremente, se um jogador pode ser chamado de macaco em rede nacional sem grandes consequências, então qualquer imbecil no estádio se sente no direito de fazer o mesmo. porque ele sabe que nada vai acontecer. porque ele sabe que, no final, sempre vai ter notas de repúdio e um comentarista pra dizer que “era só provocação” ou que “isso sempre existiu no futebol”… ou fingindo que nada aconteceu e nem fazendo as perguntas que devem ser feitas.

mas não, cacete. isso não é futebol. isso é um espelho da sociedade. um reflexo de como ela sempre viu os negros…

e eu penso no meu filho. penso no dia em que ele vai crescer e entender isso tudo. no dia em que ele vai perceber que um jogador negro nunca está apenas jogando futebol. que ele sempre carrega nas costas um peso a mais, um julgamento extra, um risco maior. e eu vou olhar nos olhos dele e explicar. explicar que o mundo ainda trata negros como inimigos, como intrusos, como inferiores. explicar que aquele xingamento, aquela ofensa, não é só sobre um jogo. é sobre um sistema inteiro.

e me revolta. porque o futebol deveria ser um jogo. deveria ser sobre tática, sobre rivalidade saudável, sobre paixão. mas, pra alguns, nunca vai ser só isso. vai ser um lembrete constante de que não importa o talento, a camisa, a torcida… se você nasceu negro, sempre vão tentar te colocar no seu “lugar”.

o problema não é o futebol. o problema somos nós. e enquanto aceitarmos isso como “parte do jogo”, estaremos dizendo que racismo é só uma característica do esporte, e não um câncer da sociedade. estaremos nos tornando cúmplices.

e eu, como pai, como torcedor recente, como ser humano, me recuso a aceitar isso. me recuso a assistir calado enquanto um garoto é humilhado em rede nacional por ser negro. me recuso a deixar meu filho crescer num mundo onde isso é normal.

porque não, essa merda não é normal. nunca foi. nunca será. e se tem uma coisa pela qual vale a pena gritar, brigar e lutar, é pra garantir que o próximo moleque que entrar em campo só precise se preocupar em jogar bola.