
acordei hoje com a mesma sensação de sempre… a vida, esse prato rápido servido frio, continua sendo tratada como se fosse um menu degustação de dez etapas com harmonização de vinhos e show de luzes. e o mais fascinante, ou deprimente, é que não precisa ser assim. podia ser pão, vinho, um banco de praça e uma tarde sem planos. mas não. é tudo sobre camadas. rituais. metas. conteúdo. performance. e sempre, sempre, uma necessidade absurda de transformar o óbvio em enigma.
não sei quando exatamente começou essa compulsão por complicar o que era simples. talvez no dia em que se decidiu que cada decisão, cada movimento, cada escolha trivial deveria ser um reflexo de uma suposta identidade. não basta mais acordar e viver. é preciso viver com intenção, como se respirar já não fosse um feito honesto o suficiente. como se comer algo gostoso sem fotografar fosse desperdício. como se ficar em silêncio fosse sinal de atraso de vida.
há algo profundamente cômico no estilo riso engasgado de um filme europeu no modo como insistimos em transformar tudo em tese. o café precisa ter história, o trajeto até o trabalho precisa ser otimizado, a pausa precisa ser produtiva. até o descanso agora é monitorado por aplicativos que avisam se você relaxou da maneira “certa”. claro, porque até descansar errado virou uma possibilidade.
fico observando isso tudo como quem assiste a uma brigada de cozinha preparando um miojo como se fosse foie gras. a mise en place da vida moderna. os ingredientes estão ali… tempo, corpo, uma cabeça mais ou menos no lugar. e mesmo assim, ao invés de apenas cozinhar, opta-se por um espetáculo. cronogramas. metodologias. diagnósticos. e o prato final? quase sempre morno. insosso. esteticamente bonito, funcional, mas com gosto de nada.
não é a vida que é complexa. é o medo que a gente tem de encarar sua simplicidade brutal. a ideia de que talvez o momento presente seja tudo o que existe é mais aterrorizante do que qualquer conta pra pagar. porque se tudo se resume ao agora, não há nada a conquistar além da capacidade de estar. e estar, assim, sem fazer nada, sem justificar… virou luxo. luxo silencioso. subversivo até.
às vezes me pego pensando que o excesso de complexidade virou a religião oficial dos inseguros. aquele que não sabe o que está fazendo, decora. cria camadas. disfarça. e vai empilhando funções, tarefas, ocupações, como quem constrói uma fortaleza de post-its colorido pra esconder o fato de que não sabe mais o que é um fim de tarde em paz.
viver deveria ser mais simples. não necessariamente mais fácil… porque fácil é outra armadilha. mas simples no sentido mais direto possível… levantar, fazer o que tem que ser feito, comer alguma coisa honesta, não fingir profundidade onde só existe barulho, e se possível, dormir em paz.
mas não. há sempre mais uma notificação. mais uma técnica. mais um medo de estar desperdiçando uma suposta grandeza que talvez nunca tenha existido.
e assim seguimos, complicando. não porque precisamos, mas porque desaprendemos o valor do silêncio. e daquilo que não precisa ser dito, curtido ou validado. só vivido. como uma boa refeição feita sem receita. na base do olho, da mão, da fome real.