
se quiser me conhecer, não pergunta minha profissão, minha cidade natal, meu signo ou meu prato preferido. pergunta que filmes me moldaram. porque eu não fui criado por gente, fui moldado por imagens, falas, planos longos e cortes secos. fui criado pelo silêncio de michael corleone, pela risada nervosa do jules antes de fuzilar um idiota, pela respiração do hal 9000 pedindo pra viver, pelas lágrimas da mulher que morre sorrindo num filme do bergman. minha identidade tá nos créditos finais. meu trauma é widescreen.
o começo foi coppola. claro. ele foi deus. mas um deus rancoroso, vingativo, um artista que entendeu que o poder não corrompe, ele revela. vi o poderoso chefão cedo demais, e foi como tomar uísque puro com oito anos. me destruiu, me formou, me ensinou que a família é uma ficção alimentada a medo e silêncio. michael me ensinou a arte de matar devagar, com olhos, com pausas. quando ele diz “it’s not personal, son. it’s strictly business”, eu entendi o mundo. não tem ética, só estratégia. e o beijo que ele dá no fredo antes de mandar matar é o amor sendo esmagado pela lógica. o terceiro filme, que todo mundo ridiculariza, é o testamento. michael velho, com a filha morta nos braços, o rosto desfigurado de dor, sem gritar, sem lágrimas, só aquele grito mudo no chão da ópera… aquilo sou eu, tentando fingir que tá tudo bem. e apocalypse now? puta que pariu. aquilo não é filme, é um estado mental. “the horror… the horror…” não é fala, é diagnóstico. coppola me jogou no meio da selva, me arrancou a pele e me mandou de volta pro mundo com um cigarro aceso e a certeza de que nada faz sentido.
depois veio tarantino, como uma overdose de tudo que é divertido, feio e brilhante ao mesmo tempo. ele me ensinou que estilo é conteúdo, e que um diálogo bem escrito vale mais que mil balas. “say ‘what’ again, i dare you, i double dare you motherfucker.” essa frase me deu mais alegria que muitos filmes de comédia. jules é o profeta do caos, e quando ele diz “i’m trying real hard to be the shepherd”, eu acreditei nele. não porque ele é bom, mas porque ele é real. kill bill me ensinou que a vingança precisa de trilha sonora e figurino certo. e jackie brown? subestimado, lento, adulto. foi o primeiro filme que me fez gostar do silêncio. tarantino é a prova de que o cinema pode ser sujo e ainda assim perfeito.
aí hitchcock. o sádico elegante. o desgraçado que fazia você se borrar com uma sombra na parede. vi janela indiscreta e nunca mais consegui olhar pela minha sem me sentir cúmplice. psicose me ensinou que protagonistas morrem cedo e que a vida não espera sua narrativa fazer sentido. e um corpo que cai me fez entender que obsessão não é amor, é só algo que apodreceu. hitchcock me moldou com medo. o medo certo. o que te mantém esperto.
kubrick foi o cirurgião. o homem que me operou sem anestesia. laranja mecânica foi um chute na cara com trilha de beethoven. alex é o monstro que a sociedade cria e depois tenta punir com terninho moralista. 2001 é o vazio falando com você. “my mind is going, dave.” e nesse momento, eu senti pena de uma inteligência artificial. e o iluminado é o retrato mais honesto de um homem perdendo a cabeça num emprego de merda. kubrick não quer que você goste, quer que você aguente.
então vem wes anderson, o lunático dos detalhes, o arquiteto da tristeza doce. os excêntricos tenenbaums é o filme que mais me destruiu com ternura. “i’ve had a rough year, dad.” / “i know you have, chas.” esse diálogo vale mais que mil abraços fingidos. rushmore é a humilhação estilizada. max fischer é o fracasso encantador em pessoa. e o grande hotel budapeste me fez chorar com pastel e nazismo. wes anderson me ensinou que a estética salva. mesmo que só um pouco.
lynch me jogou no fundo. cidade dos sonhos é um loop emocional sem saída. “this is the girl.” e pronto. a realidade desaba. império dos sonhos me fez questionar tudo. “no hay banda.” não tem música, não tem estrutura, não tem lógica. só imagens cravando garras na sua mente. lynch não te dirige. ele te sequestra.
scorsese me ensinou que culpa é um ciclo. touro indomável é a autodestruição elevada à arte. os bons companheiros me deu vontade de ser bandido e depois me mostrou o preço. cassino me mostrou que amar é perder controle. e o irlandês? silêncio. velhice. arrependimento. é o filme que passa quando você fecha os olhos pra morrer.
paul thomas anderson me ensinou a falhar com grandeza. sangue negro é o capitalismo vestido de ódio. “i drink your milkshake!” é mais poderoso que qualquer discurso de ceo. magnólia é o caos emocional encenado por gente que não consegue pedir desculpas. trama fantasma é a relação mais tóxica já filmada com elegância.
e eu? eu sou isso. um corte aqui, uma frase ali. a trilha sonora de um filme que ninguém entendeu, mas que eu revi dez vezes só pra sentir de novo. não tenho infância, só flashbacks em preto e branco. não tenho grandes memórias tenho closes, takes, monólogos, fade out.
e se tudo isso não te diz quem eu sou, então nada mais vai dizer. porque eu fui moldado na marreta. editado com navalha. dublado pela voz de personagens que erraram mais do que eu jamais vou ter coragem de tentar. eu não sou feito de memórias. sou feito de takes. cortes. repetições. falas que ecoam como preces e que são, ao mesmo tempo, maldição e manual de sobrevivência.
e se quiser me entender… não leia meu horóscopo. veja o que me moldou.