
todo mundo quer se encontrar. mas ninguém quer fazer terapia, sair da casa da mãe ou admitir que odeia o próprio emprego. então o que resta? isso mesmo, a academia. esse spa da disfunção emocional onde se resolve trauma com agachamento e se recalcula a autoestima pelo tamanho do ombro. um templo de ferro, suor e playlists de trap onde a dor física é um substituto barato pra dor de existir.
é lá, entre aparelhos de tortura colorida e espelhos estrategicamente posicionados, que as pessoas tentam resolver o que a psicanálise falhou. querem curar a ansiedade com três séries de bíceps e um scoop de pré-treino que parece metanfetamina de laboratório clandestino. querem vencer a insegurança com um tanquinho e 18 selfies no elevador. querem ter foco, propósito, senso de pertencimento mas no fundo só querem que alguém diga: “caramba, como você tá diferente”.
a academia virou esse teatro moderno onde ninguém é quem diz ser. todo mundo é um personagem mal ensaiado fingindo disciplina, escondendo desespero, e compartilhando a própria performance como se fosse superação. e nesse palco iluminado por led branco e som de halteres caindo, desfilam os arquétipos mais tragicômicos da nossa geração. não são só pessoas malhando, são epifanias ambulantes com regata cavada.
geralmente, usando ainda pijama, sento na mesma mesa de sempre. a mesma. com meu café e começo a observar…
primeiro cruza meu campo de visão a entidade que combina a roupa como se fosse um desfile militar.
cada peça faz parte de uma estratégia.
mesma cor. mesmo tom. zero margem de erro.
o look vem treinado de casa.
é o arquiteto do outfit absoluto.
treina? talvez.
mas quem se importa quando o zíper da mochila combina com a meia?
ao lado, vejo o evangelizador digital da musculação.
chega com o tripé pendurado, a cara esticada e a autoestima inflada por algoritmo.
dá play no próprio delírio, grava três ângulos do mesmo exercício e posta antes de terminar a série.
não quer treinar.
quer provar que treina.
e se não render comentário, posta de novo com filtro e frase bíblica.
tem o que anda pela sala com o celular grudado no braço, o fone colado no crânio, o smartwatch vibrando a cada batida do coração.
faz check-in na rosca direta, sincroniza o abdominal com o spotify.
é o tecnocrata do treino mínimo.
não faz um movimento sem medir.
mas se perder o sinal do wi-fi, desiste de viver.
mais ao fundo, o que chega sempre junto de dois ou três.
fala alto, ri antes de qualquer piada, ocupa o aparelho e a atenção de quem estiver a cinco metros.
não faz por mal.
mas também não faz nada.
é o agregador de improdutividade afetiva.
vem mais pela roda de conversa do que pela carga.
encostado num banco, vejo o prestativo profissional.
não treina sem interromper o treino dos outros.
ajusta o cotovelo de desconhecidos, ensina como segurar o halter, sugere variação mesmo sem ser chamado.
fala baixo, mas com tom de dono da razão.
acha que tá ajudando.
e talvez esteja.
mas dá vontade de levantar o supino e sumir com ele.
roda o salão o tagarela do nada físico.
circuita todos os cantos da academia com um papo que não acaba nunca.
conta história, comenta treino, compartilha a vida.
só não malha.
tá sempre indo pra algum aparelho.
nunca chega.
é o aeróbico oral involuntário.
ao lado do espelho, vejo o viciado em reflexo.
olha pra si como se tivesse dúvidas existenciais a cada repetição.
verifica cada ângulo.
ajeita o cabelo.
contrai. relaxa. contrai de novo.
não busca resultado.
busca confirmação.
é o narciso hipertrofiado.
não pode existir sem ver a própria existência.
passa perto de mim o maluco visionário da musculação.
faz um treino que ninguém ensinou.
inventa movimentos. mistura aparelho. junta corda com agachamento, bicicleta com salto.
um caos coreografado.
ninguém entende.
nem ele.
mas parece satisfeito.
como todo fanático sem doutrina.
perto da janela, senta o monge do silêncio absoluto.
chegou, treinou, vai embora.
sem falar.
sem sorrir.
sem existir além daquilo.
ninguém conhece.
ninguém perturba.
é o fantasma do foco puro.
a sombra que carrega disciplina real.
num canto estratégico, sempre vejo o vendedor da verdade muscular.
sabe tudo. fala pouco.
quando fala, é certeiro.
não tenta impressionar.
só acerta.
explica sem arrogância.
ensina sem teatro.
não quer palmas.
quer precisão.
é raro.
e por isso, assustador.
tem ainda o maratonista da indecisão estética.
chega, gira, avalia, dá meia-volta.
experimenta o aparelho, desiste. senta, levanta. gira mais um pouco.
é o looping da dúvida materializada.
treinar? não treina.
mas percorre a academia como quem busca um sentido místico no próprio deslocamento.
vejo o que entra com uma mochila de 40 litros e um semblante de quem vai acampar no supino.
abre compartimentos, tira pote, toalha, creme, fone, cinto, shake, outro shake.
tudo milimetricamente organizado.
tudo milimetricamente inútil.
é o escoteiro do fitness.
preparado pra tudo.
menos pra treinar.
ali no canto, senta o que parece estar sempre no dia mais difícil da vida.
olhar perdido, repetições arrastadas, respiração pesada demais pra carga leve.
não olha pra ninguém.
não escuta nada.
é o mártir do treino existencial.
tá ali por obrigação cósmica.
e por medo de parar.
cruza meu caminho o que passa o treino inteiro falando com a câmera.
não é influencer.
mas tenta.
não convence.
mas insiste.
é o protagonista de série que ninguém assiste.
treina como quem grava um documentário premiado sobre a própria mediocridade.
e acredita piamente que vai viralizar.
no espelho lateral, alguém testa todos os ângulos do corpo a cada trinta segundos.
faz uma série, olha de lado.
dá um passo, confere a sombra.
ajeita a roupa, verifica o caimento.
é o estilista da própria vaidade ambulante.
não veio melhorar.
veio confirmar que ainda é bonito, ou pelo menos, simétrico.
e no bebedouro, de novo, vejo a figura que toma água como quem toma coragem.
a cada gole, um respiro.
a cada pausa, um suspiro.
nunca treina por mais de dois minutos sem parar pra “hidratar”.
é o navegador da fuga líquida.
não se engana.
só se atrasa.
e acha que tá tudo bem.
talvez esteja.
talvez não.
não sou eu que vou dizer.
só observo.
e cá entre nós?
o circo é ótimo.
todo dia uma trupe nova.
o que grita. o que posa. o que medita entre séries.
todo mundo fingindo que venceu alguma coisa.
todo mundo cheio de disciplina, cheio de foco,
cheio de medo.