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2025

boina

agora eu uso boina. e, honestamente, nem sei mais onde começa a piada e onde termina a necessidade. virou esse hábito tão mecânico quanto respirar, só que infinitamente mais provocativo. porque, convenhamos, quem usa boina hoje, fora dos figurinos de teatro de escola ou das fotos de influencers tentando parecer “conceituais”?

ninguém. justamente por isso, eu uso. porque gosto da sensação de estar andando na contramão do desfile deprimente das roupas esportivas hiperfuncionais, das camisas de linho bege, dos tênis de solado grosso que parecem mais indicados pra uma missão na antártida do que pra atravessar a rua até a padaria. eu uso boina porque, enquanto todos estão preocupados em parecer “confortáveis”, “versáteis”, “minimalistas”, eu prefiro parecer deslocado, excessivo, inadequado.

boina não é só um acessório, é um comentário. silencioso, mas gritante. como aquele olhar que você lança no jantar de família quando alguém solta uma frase idiota e você decide que o silêncio constrangedor é mais eficaz do que qualquer resposta.

e claro, não dá pra usar boina sem carregar junto a herança maldita de quem a usou antes. não como homenagem, não como continuação, mas como quem passa por uma cidade fantasma e decide assobiar só pra ouvir o próprio eco.

porque, veja bem, a boina já foi muitas coisas… em brecht, um gesto cortante, um ponto final ambulante, uma borda rígida pra quem se recusava a ser suavizado. em beckett, um adorno mínimo pra quem já tinha desistido de qualquer adorno. em picasso, uma extensão natural do desdém por qualquer tipo de limite. e no che… bem, no che virou caricatura, virou símbolo, virou souvenir. o maior triunfo e o maior fracasso da boina condensados num único retrato pixelado, replicado até a náusea.

eu não uso boina pra ser símbolo de nada. uso boina como quem acende um cigarro em ambiente fechado sabendo que incomoda, sabendo que ninguém mais faz, e exatamente por isso, fazendo.

a boina é essa coisa ultrapassada, desconfortável, muitas vezes inútil, que não protege do frio nem da chuva, que esquenta demais no verão e voa com o primeiro vento mais atrevido. mas tá ali, firme, como um erro assumido, como um vício sem justificativa, como um lembrete silencioso de que algumas escolhas a gente não faz, simplesmente aceita.

e tem dias que ela pesa, que incomoda, que parece um fardo. e tem dias que ela me salva, de olhares, de julgamentos, de conversas indesejadas. porque a boina cria essa bolha, essa cápsula de diferença… as pessoas olham, não sabem se perguntam, não sabem se elogiam ou se debocham e nesse impasse, me deixam passar. perfeito.

uso boina como quem usa ironia, não pra esconder, mas pra marcar território. pra estabelecer distância, pra lembrar que eu continuo me recusando a vestir o uniforme do consenso, do bom gosto consensual, da praticidade sem alma.

e, claro, às vezes, enquanto ajeito a boina, percebo que continuo batendo a cabeça nas coisas, nas pessoas, nas escolhas erradas, nas conversas que não devia ter entrado. mas a boina já não está mais ali pra proteger. está pra outra coisa, pra lembrar que, mesmo tropeçando, mesmo esbarrando, mesmo errando, continuo indo.

a boina não é símbolo, não é armadura, não é disfarce, é a marca silenciosa de quem se recusa a pedir licença, de quem atravessa, provoca e, se necessário, incomoda.

então agora eu uso boina. não porque precise. não porque queira parecer. mas porque gosto dessa ideia de ser um anacronismo ambulante, um erro de costura na malha lisa e previsível da estética contemporânea.

uso boina porque o mundo ficou confortável demais, adaptado demais, amaciado demais. e eu, sinceramente, prefiro manter alguma borda áspera. mesmo que só seja um pedaço de pano torto na cabeça, meio ridículo, meio desnecessário… mas inteiramente meu.

e, acima de tudo, absolutamente irretratável.