
poucas coisas me fazem questionar o valor da civilização moderna tanto quanto aquele momento sagrado, aquele ritual de merda, quando o iluminado da frente resolve reclinar a porra da poltrona. e não tô falando daquele leve encostinho simpático, aquele gesto civilizado de “ei, vou só ajustar aqui pra tentar fingir que esse avião não é uma lata de sardinha voadora”. não. eu tô falando do sujeito que puxa a alavanca como quem tá abrindo um portal pro nirvana. ele joga o corpo pra trás com a leveza de um elefante morto, me jogando metade da tela do meu filme no peito e a outra metade no vácuo existencial.
e é sempre assim, eu tô ali, miseravelmente tentando comer aquele risoto genérico com gosto de papelão e de repente, páá. o encosto invade meu espaço vital como se tivesse recebido um convite pessoal. minha bandeja? virou um campo de guerra. meu joelho? objeto de tortura medieval. e o cretino lá, mergulhado no paraíso dele, como se estivesse num spa flutuante, bufando de prazer como se tivesse descoberto a cura pra depressão nas costas de um assento da gol.
é quase poético, se poesia fosse escrita com ranço, irritação e um toque de claustrofobia.
mas o que me mata de verdade é a confiança, o descaramento sereno. ele sabe o que tá fazendo. eles todos sabem. e fazem mesmo assim. por quê? porque o avião é um microcosmo perfeito da humanidade, todo mundo fodido, mas sempre tem um filho da puta que quer ficar um pouquinho mais confortável que o resto.
então, se você é desses, o reclinador convicto, o messias do conforto próprio, o conquistador de espaços alheios, saiba que você é o motivo pelo qual eu acredito que, às vezes, a humanidade não merece voar.