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2025

lawrence

então vamos lá.
hoje à noite, porque aparentemente gosto de ser punido com classe, enfiei meu corpo mole e meu espírito mais mole ainda no sofá e dei play, mais uma vez, nessa muralha de celuloide chamada lawrence da arábia.
3 horas, 41 minutos e 20 segundos de puro cinema.
e quando eu digo “puro cinema”, não estou falando de narrativa coesa, desenvolvimento emocional ou qualquer baboseira que oficina de roteiro básico costuma empurrar. tô falando de delírio visual, pretensão épica, um tapa colonial envolto em panos brancos e olhos azuis absurdamente irritantes.

ver esse filme hoje é quase um ato de sabotagem espiritual.
é lembrar, de forma dolorosamente lenta e majestosa, que já houve um tempo em que o cinema era feito não pra agradar, mas pra esmagar. e esmagava com elegância. com sutileza. com camelos, pólvora e um protagonista que mais parece uma entidade narcísica do que um ser humano funcional.

peter o’toole não atua.
ele desfila pela tela como se fosse um anjo albino pós-apocalíptico recém-saído de um spa imperial. ele tem aquela beleza irritante e gélida de quem nunca foi realmente tocado pela vida. ou pela realidade. ou pelo calor do deserto, o que é curioso, já que ele passa a maior parte do filme no meio de uma fornalha chamada oriente médio.

e por falar em deserto…
ah, o deserto. o verdadeiro protagonista.
nunca um pedaço de areia foi filmado com tanto fetiche. cada plano é uma tentativa clara de te lembrar o quanto você é pequeno, frágil, urbano, ridículo. o deserto não fala. não explica. não responde. ele só está lá, imenso, silencioso, completamente desinteressado no teu sofrimento.
e lawrence?
ele olha pro deserto como quem olha pra um espelho e finalmente vê algo digno de ser admirado, a própria loucura refletida no nada.

é isso que o filme entende, e esfrega na tua cara o tempo todo… não há redenção no heroísmo, só vício.
não há pureza.
há uma espécie de tesão contido na tragédia.
e esse homem, esse tal de lawrence, com sua mania de grandeza, sua retórica poética e sua recusa em ser apenas um ser humano medíocre, é o veículo perfeito pra isso.

cada frase que ele solta parece escrita por um poeta bêbado e depois reeditada por um propagandista de império.
“nada está escrito.”
mentira.
está tudo escrito.
só que ele finge que não, porque precisa acreditar que está fazendo história, não apenas repetindo um padrão bem gasto de dominação disfarçada de iluminação.

e então vem a tal cena. aquela que sempre me faz rir de nervoso.
ele executa o homem. aquele que ele mesmo salvou. e diz, sem piscar… “eu gostei.”
a frase mais sincera de todo o épico. ali não tem máscara. não tem império. não tem estratégia.
só um homem descobrindo que o poder, a violência e o controle são, de fato, bastante satisfatórios.
e tudo isso filmado com tanta beleza, tanta dignidade estética, que você quase esquece que está assistindo um colapso moral em tempo real.

porque é isso, lawrence da arábia é um filme sobre queda.
uma queda gloriosa, lenta, cheia de vento e silêncios dramáticos.
é sobre um homem que acreditou ser uma ideia.
e no fim, percebeu que a ideia era maior do que ele.
e pior, mais vazia.

o final não entrega nada.
não há catarse.
não há lição.
ele entra num carro. um motorista faz um comentário qualquer. a câmera se afasta. o deserto desaparece. o mito vira sombra.
fim.
e você fica ali, parado, com a alma desidratada, o queixo meio torto e a sensação de que assistiu a uma coisa que te destruiu um pouco.
e que, de algum jeito, você precisava disso.

e então vem a pergunta inevitável, que sempre me visita depois da sessão…
por que eu assisto isso?
por que eu volto?
por que eu me submeto, de novo e de novo, a esse desfile de miséria emocional, fetiche colonial, travessia suicida e frases que deveriam ser gravadas em mármore?

simples.
porque lawrence da arábia é o lembrete mais cruel e necessário de que o épico de verdade não precisa de lição de casa, de redenção, de arcos emocionais previsíveis.
ele só precisa de convicção.
e convicção, meu amigo, é coisa rara.
especialmente num mundo onde tudo vem com manual, tutorial, final fechado, e selo de “aprovado pelo comitê da experiência agradável”.

lawrence da arábia não quer que você goste.
ele quer que você sinta.
mesmo que seja desconforto.
mesmo que seja angústia.
mesmo que você termine exausto, repensando a própria existência, o próprio lugar na história, e até o próprio gosto por cinema.

e é por isso que eu volto.
porque no fundo, muito fundo, eu também quero atravessar um deserto só pra descobrir que o que eu procurava… nunca esteve lá.

só eu mesmo.
com a areia nos olhos e aquele sorriso torto de quem entendeu, tarde demais, que ser lenda é um negócio profundamente solitário.
e bonito.
e inútil.
como tudo que realmente vale a pena.