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2025

a morte do café

eu lembro exatamente do dia em que percebi que o café tinha morrido. não foi num campo de batalha, nem numa esquina escura de beirute. foi numa cafeteria com parede de cimento queimado, trilha sonora de indie melancólico e um desgraçado me explicando que o espresso que eu tinha acabado de pedir foi extraído a 93,7 graus por exatos 27 segundos, com moagem calibrada a laser e grão fermentado no útero de uma lhama vegana no sul do peru. eu só queria um café. ganhei uma aula de física quântica com sotaque de arrogância barista.

eu sou da época em que café era um soco na cara. uma punhalada no fígado. você acordava, jogava duas colheres mal medidas de pó numa água fervida com raiva e tomava aquilo como quem encara a vida… de cabeça baixa e com estômago vazio. hoje? você entra num desses templos gourmet e se sente num batismo satânico. o barista… esse novo messias da desgraça urbana… vem de avental, tatuagem de planta aromática e uma aura de superioridade transcendental. parece que vai te servir a cura da depressão em forma líquida.

ele pergunta como se estivesse te oferecendo uma experiência transcendental “prefere uma fermentação carbônica de um grão etíope com notas de bergamota e final floral ou um anaeróbico colombiano com acidez brilhante e retrogosto de esperança?” esperança é o caralho. eu quero café. quero amargura, quero verdade, quero o gosto de quem passou a noite fumando derby e ouvindo black sabbath no volume errado.

mas não. agora, se você não sabe o terroir, o clima, o humor da colheitadeira no dia da extração e o signo ascendente do produtor, você é um pária. você não merece aquele gole sagrado. você merece nescafé. e quer saber? às vezes, eu quero mesmo. quero aquele pozinho indigno, que vem num pote de plástico barato, que dissolve com raiva na água e me olha nos olhos dizendo “isso é o que tem. lida com isso.” não tem espuma de leite com florzinha, não tem storytelling de plantação biodinâmica, não tem barista me julgando por querer açúcar. tem só café. bruto, feio, real.

eu não quero um cappuccino desenhado. não quero uma xícara feita por ceramistas japoneses. quero o gosto da rua. o gosto de vida mal passada. mas parece que isso virou crime. parece que hoje, pra tomar café, você precisa passar por um crivo espiritual, uma provação, uma purificação aromática. se você pedir o grão errado, o barista te excomunga. se pedir com leite, ele te cancela no instagram.

mas eu insisto. eu vou continuar tomando café de posto, de máquina velha, de coador de pano imundo. porque, no fim das contas, é ali que tá a verdade. o resto é liturgia gourmet pra gente que confunde cafeína com status. me dá o meu café ruim. e me deixa em paz.