
imagine a nova zelândia. aquele cartão postal do outro lado do mundo com cara de anúncio de agência de turismo… fiordes, ovelhas, montanhas, vulcões e um silêncio que beira o monástico. agora rasga essa paisagem idílica no meio com um helicóptero preto. dentro dele, não tá um mochileiro em busca de paz interior. tá um bilionário do vale do silício, carregando o equivalente a três pibs de país africano no bolso, pronto pra construir o bunker de seus sonhos. ali, naquele chão tremendo, ele quer cravar sua última aposta, sobreviver ao fim do mundo com luxo, wi-fi e hortinha hidropônica.
não é só peter thiel com sua tara libertária e aquela cara de quem processa a própria sombra. zuckerberg tem o seu. altman, huffman, palmer luckey… todos têm seus refúgios. bunkers que não são abrigos, são spas apocalípticos com sauna, estúdio de yoga, cinema, academia e até pista de boliche subterrânea. onde antes se estocava comida enlatada, agora se serve comida molecular. e onde se temia a radiação, hoje se discute qual iluminação de led é menos agressiva pra pele no inverno nuclear.
mas o que é mais nojento, e ao mesmo tempo fascinante é que essa galera não tá simplesmente fugindo do apocalipse. eles estão se escondendo do monstro que eles mesmos ajudaram a criar. as redes que polarizaram o mundo? as plataformas que deram palco pra teorias da conspiração? os sistemas que deixaram a informação menos confiável que o horóscopo da rádio local? tudo passou por eles. eles apertaram os botões. colheram os lucros. agora querem desaparecer.
e escolhem a nova zelândia. por quê? porque tem geografia remota, população pacífica, estabilidade política e… passaportes fáceis. thiel, por exemplo, virou cidadão neozelandês em doze dias. DOZE. tem gente que espera isso pra tirar rg em diadema. ele comprou terra perto de wanaka e tentou construir um complexo que parecia saída de um catálogo da james turrell… arquitetura camuflada, 10 quartos, integração com a natureza. o conselho local negou. até os neozelandeses, pacatos e diplomáticos, disseram “calma lá, peter, isso aqui não é fortaleza libertária, é uma colina”.
só que isso é só a superfície. por baixo da terra, literalmente, cresce o verdadeiro império. há relatos de dezenas, talvez centenas de bunkers privados enterrados sob propriedades que vão de queenstown a christchurch. é um clube secreto. informal. mas real. os terrenos são comprados por empresas offshore, os contratos são blindados, e os operários são orientados a manter silêncio absoluto. como se estivessem construindo pirâmides modernas… só que, em vez de múmias, abrigam egos de bilhões de dólares com medo do próprio reflexo.
mas não se engane, esse impulso de escapar do próprio tempo é velho. os magnatas do século xx como carnegie, rockefeller, dupont também tinham seus esconderijos. só que eram menos sofisticados, mais discretos, mais… humanos. eles construíam fortalezas no campo, tinham cofres na suíça, trancavam coleções de arte e petróleo no porão, mas não enterravam suas famílias em cápsulas tecnológicas com filtro hepa. até os barões ladrões tinham alguma relação com o mundo real. os de hoje preferem apagar o mundo da equação.
enquanto os titãs da velha guarda financiavam bibliotecas, universidades, centros médicos mesmo que por culpa ou vaidade, os bilionários atuais investem em startups de imortalidade, ia totalitária, cápsulas criogênicas e no pacote completo de “como fugir da merda sem se sujar”. os ricos de antes dominavam o mundo… os de agora fogem dele. são arquitetos da distopia que, por alguma razão, acham que ela não vai encontrá-los debaixo da terra.
mas o que me fez pesquisar sobre essa loucura toda e chegar nesse texto foi o filme mountainhead, da hbo, entra com precisão cirúrgica. não como apêndice perdido, mas como radiografia dessa elite em fuga. dirigido por jesse armstrong, o mesmo que destrinchou a alma podre de herdeiros em Succession, o filme é uma sátira brutal ambientada num bunker onde quatro bilionários se escondem enquanto o planeta desaba. mas em vez de cooperação ou redenção, o que se vê ali é exatamente o que está fermentando sob os campos da nova zelândia… paranoia, traição, jogos de poder, egos inflados e um tédio tão espesso que dá pra cortar com faca de manteiga.
os personagens do filme são arquétipos refinados dessa nova casta de deuses covardes. venis, uma espécie de frankenstein entre musk e zuckerberg, vê sua criação, uma IA sem freios, começar o colapso. randall, uma versão definhada de thiel, busca imortalidade com transfusões e downloads de consciência. jeff segura o botão que pode salvar tudo, mas hesita, porque salvar o mundo não dá retorno financeiro imediato. e hugo, o novato, o inseguro, tenta entrar nesse olimpo subterrâneo com a elegância de quem veste black tie pra trabalhar de garçom.
e o mais genial, no filme, o bunker não é refúgio. é prisão. é inferno. é o espelho claustrofóbico do medo que essa elite carrega. a estrutura que deveria protegê-los vira o cenário onde a verdade apodrece. e a maior piada, lá dentro, eles continuam se destruindo. como se o apocalipse do lado de fora fosse só pano de fundo. a verdadeira tragédia é eles mesmos.
mas voltando de onde comecei, o elemento mais cruel dessa comédia é o solo onde tudo isso acontece. a nova zelândia, com sua beleza virgem, se torna palco de um suicídio arquitetado pela vaidade. esses bunkers, por mais tecnológicos que sejam, estão fincados sobre falhas geológicas ativas. e não importa quantos filtros, armas ou painéis solares eles instalem quando o chão decidir se mexer, vai engolir tudo com a mesma delicadeza que uma baleia engole plâncton.
então a nova zelândia, essa ilhazinha romântica, virou a cápsula de fuga de uma elite que não acredita mais em nada, nem no sistema, nem nas pessoas, nem na própria criação. eles se enterram como faraós modernos, cercados de tecnologia, criptomoeda, filtros de ar e delírios de longevidade. e nós? nós ficamos aqui em cima, olhando pro céu, esperando o próximo tremor, e ouvindo os boatos sobre aquele novo complexo perto do lago, aquele que ninguém pode visitar, mas onde os helicópteros pousam de madrugada.
porque esse é o mundo em 2025. os de cima se enterram. os de baixo esperam. e o planeta, silenciosamente, gira como quem segura o riso, sabendo que o bunker mais caro do mundo não vai adiantar nada quando a terra decidir que já teve o suficiente.