
quando eu ouvi glenn gould pela primeira vez, entendi que tinha passado a vida inteira ouvindo mentira. mentira embalada, vendida, ovacionada. piano como decoração sonora, bach como papel de parede elegante. aí vem esse canadense pálido feito papel fotográfico vencido, senta numa cadeira de madeira ridiculamente baixa, e toca como se o piano fosse um artefato extraterrestre. e, claro, ele resmunga. canta. murmura. sussurra como se estivesse em transe. indo contra todas as regras… sim ele murmura a música que toca…
e sim, aquilo é desconcertante. porque não foi feito pra entreter. não é um recital, não é um espetáculo, não é uma experiência instagramável. é dissecação. é glenn gould arrancando a polidez da música clássica como quem arranca uma casca de verniz barato de um móvel antigo. ele não te convida. ele te sequestra.
e o que ele faz com as goldberg variations em 1955… é indecente. rápido, claro, meticuloso até a perversão. soa como se ele estivesse limpando o excesso de emoção da peça com solvente. cada nota é colocada no lugar com uma convicção quase doentia, como se a música estivesse finalmente sendo tocada sem a mentira da emoção forçada.
só que aí você começa a ouvir diferente. começa a perceber que, por trás da precisão cirúrgica, existe algo ainda mais perigoso, intenção. glenn gould não está interpretando bach. ele está reivindicando bach. tomando posse da obra com a frieza e a ousadia de quem sabe que vai ser odiado por isso, e não se importa.
e então, do nada, lendo sobre ele, me surge uma frase dele em uma entrevista. não num livro de autoajuda, não num ted talk, não como título de post motivacional. ele solta como quem fala a previsão do tempo…
“o propósito da arte não é uma liberação momentânea de adrenalina, mas a construção ao longo da vida de um estado de admiração e serenidade.”
e aí tudo faz sentido.
porque glenn gould não queria sua euforia, sua lágrima no canto do olho, seu “bravo” ensaiado no fim da apresentação. ele queria algo incomparavelmente mais ambicioso, mudar permanentemente o seu silêncio. alterar o modo como você respira quando está sozinho diante de algo que não entende, mas que reconhece como verdadeiro.
em 1981, ano em que nasci, ele grava as goldberg de novo. mais devagar. mais denso. como se estivesse escavando a própria memória da música, procurando alguma coisa que a juventude veloz de 1955 não conseguia enxergar. a mesma peça. o mesmo gould. outro mundo. outro tempo. outro tipo de assombro.
e não é nostalgia. é método. é a prova de que a arte de verdade não quer te arrebatar, quer te reconfigurar.
e que isso leva tempo. uma vida, talvez.
glenn gould entendeu isso. viveu isso. gravou isso.
e o resto de nós segue aqui, ainda acreditando que arte é pirotecnia emocional.
enquanto lá no fundo, naquele sussurro quase inaudível entre uma variação e outra, ele continua dizendo:
“não é por você.
é apesar de você.”