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2025

música

música, na minha vida, nunca começou com “ah, meu pai tocava violão” ou “cresci ouvindo vinil de jazz sofisticado”. não. começou com um rádio de pilha encardido, encostado numa prateleira engordurada de cozinha, sintonizado num meio termo entre a estação am e um chiado que soava como se o universo estivesse tentando avisar alguma coisa e ninguém quisesse ouvir. ali tocava tudo… brega, samba, um bolero aleatório, propaganda de colchão. não tinha curadoria, era só barulho empurrado na sua cara.

a primeira vez que eu ouvi algo que parecia perigoso foi num vinil do deep purple… machine head, com a capa meio comida por mofo, encontrado em um baú. “smoke on the water” parecia um aviso, tipo “não volte para a escola amanhã, tem coisa mais importante acontecendo”.

depois disso, não teve volta. música passou a ser contrabando. não tinha spotify, não tinha algoritmo, tinha camelô com caixa de sapato cheia de fita pirata, tinha amigo que gravava lado a com sabbath e lado b com maiden, tinha capa mal xerocada que parecia panfleto de seita. e, de repente, eu tava no meio de um mundo onde riff era lei e solo era pregação. aquilo não era música pra deixar no fundo enquanto lava a louça, era música pra virar a mesa e quebrar o prato.

fui entrando fundo naquilo que incomodava. bandas que soavam como motor de caminhão desregulado, vozes que não tentavam ser bonitas, discos que não queriam ser perfeitos. cada álbum bom parecia uma briga de bar gravada no momento certo. aprendi rápido que rock não é pra ser “agradável”, é pra ser um soco.

e o punk… o punk me ensinou que não precisa de diploma pra ter algo a dizer. não tinha virtuosismo, não tinha maestro, tinha urgência. e eu me vi naquele barulho… direto, sem firula, sem querer provar nada pra ninguém além do fato de que você tá vivo e não quer ser deixado em paz.

no meio desse caos, o blues apareceu como um velho no canto do bar que já viu mais coisa do que você vai ver na vida. robert johnson, muddy waters, howl’n wolf… gente que não precisava inventar metáfora, falava de dor, perda e desejo como quem descreve o clima. e você acreditava, porque sentia na pele.

jazz, pra mim, nunca foi sobre “classe”. foi sobre gente que sabia fazer um instrumento soar como ameaça. coltrane, mingus, davis… cada um com o próprio veneno. não era música de elevador, era música de beco escuro.

com o tempo, percebi que as melhores bandas, as que ficaram, têm uma coisa em comum, todas soam como se estivessem prestes a desmoronar. é aquela sensação de que a música tá se segurando por um fio e é isso que mantém você ouvindo. gente que grava como se fosse a última coisa que vai fazer antes de morrer.

e eu segui colecionando esse tipo de som. não como coleciona vinil caro pra deixar na prateleira e exibir no instagram, mas como quem coleciona cicatriz, cada disco, cada show, cada noite de barulho deixou uma marca. e não é marca que eu quero que desapareça.

no fim das contas, música nunca foi trilha sonora da minha vida. foi cúmplice de tudo que eu fiz de errado, e algumas coisas que eu fiz certo, mas não me orgulho. se um dia ela acabar, eu acabo junto. até lá, deixo o volume alto o suficiente pra incomodar quem acha que o mundo deveria ser silencioso e civilizado. porque o mundo não é nada disso. e a boa música também não.