
eu olho pro mundo e a sensação é de estar preso num aeroporto internacional em pane… vozes metálicas repetindo anúncios sem sentido, filas que não andam, gente andando em círculos com a mesma expressão de cansaço e desorientação. cada portão leva ao mesmo lugar, um futuro sequestrado por gente que aprendeu a embrulhar ódio em papel de presente patriótico. e o mais irritante é que todo mundo achava que estava imune, como se a história fosse vacina. “nunca mais”, repetiram por décadas, como quem repete reza de proteção. mas aí veio o fascismo remixado, com hashtags, planilhas, powerpoints e sorrisos treinados, e o mundo inteiro caiu como principiante.
porque o truque foi sempre o mesmo, não entrar pela porta da frente, mas pelos atalhos invisíveis. não chegar de tanque, mas pelo feed. não com gritos e multidões uniformizadas, mas com memes virais e discursos embalados em tom paternal. e nós, ocupados demais com o preço do café, com a novela política da semana, com a guerra transmitida ao vivo como campeonato de futebol, nem percebemos que já estávamos dentro do cercado. quando a comédia sumiu das telas, quando o sarcasmo virou ameaça, quando a dúvida passou a ser tratada como crime, o palco já estava tomado.
nos eua, a peça ganhou uma versão trágico-burocrática, o país que jurava ser o guardião da liberdade agora terceiriza censura como se fosse serviço de entrega. não precisou de decreto explícito, bastou uma sequência de silêncios obrigatórios. humoristas cortados, jornalistas calados, universidades convertidas em fiscais de si mesmas. tudo justificado como medida de ordem, como se fosse natural que a crítica fosse apagada em nome da estabilidade. é um autoritarismo higienizado, servido em copo de plástico transparente… parece água, mas é veneno.
no brasil, a estética é outra, a farsa tropical. não se cala a voz pela força bruta, mas pela gambiarra legislativa. cada “pec” é apresentada como correção, mas funciona como mutação genética da constituição até ela virar um monstro obediente. e no meio disso, a blindagem completa… políticos que nunca caem, criminosos que nunca pagam, julgamentos que nunca terminam. aqui, a impunidade não é acidente, é indústria. a engrenagem gira a serviço de proteger os mesmos rostos, as mesmas famílias, as mesmas castas. e a população, anestesiada, assiste como quem acompanha novela, já sabe o final, mas continua vendo.
enquanto isso, o resto do planeta se incendeia. guerras fabricadas, conflitos reciclados, massacres televisionados com a mesma naturalidade de reality show. cidades viram ruínas em nome de causas que até os combatentes já esqueceram. crianças enterradas sob escombros viram estatística. refugiados se amontoam em fronteiras como números descartáveis. os governos vendem armas de manhã e discursos de paz à tarde. e ninguém se envergonha, a guerra é negócio, espetáculo, cortina de fumaça conveniente para regimes que se sustentam no caos.
e o mais insuportável é perceber como tudo isso se conecta. não são tragédias isoladas, são partes de uma mesma coreografia. o ataque à liberdade de expressão nos eua, as manobras constitucionais no brasil, as guerras intermináveis que transformam populações inteiras em pó, tudo responde à mesma lógica. desgastar, cansar, exaurir. não é preciso convencer, basta sufocar. não é preciso impor fé, basta impor fadiga. e assim, cada um se adapta ao novo normal… o riso proibido, a corrupção naturalizada, a guerra banalizada.
as instituições, em todos os lugares, repetem o mesmo ato patético, juram neutralidade enquanto carimbam documentos que sustentam o autoritarismo. universidades se tornam cúmplices. tribunais se tornam teatros. parlamentos se tornam balcões de negócios. e a imprensa, quando não é amordaçada, amordaça a si mesma. o fascismo entendeu melhor do que ninguém que não precisa destruir tudo, basta corromper o suficiente para que as próprias engrenagens façam o serviço.
e o que não percebemos é que a rotina é a arma mais sutil. supermercados continuam abertos, ônibus continuam atrasados, crianças continuam indo à escola. o mundo parece girar normalmente. mas é uma normalidade podre, de cenário de parque abandonado pintado às pressas. a ferrugem range, mas a tinta engana. e nós preferimos acreditar na tinta, porque encarar a ferrugem exigiria esforço. o conforto do autoengano é mais barato.
eu vejo esse planeta como um hospital imenso e mal iluminado. cada país é uma ala diferente, mas o cheiro de desinfetante vencido é o mesmo. nos corredores, pacientes esperando diagnósticos que já sabem… autoritarismo crônico, covardia institucional, resignação em estado terminal. em uma ala, jovens silenciados por algoritmos. em outra, políticos blindados por leis feitas sob medida. em outra, populações inteiras tratadas como descartáveis em guerras que nunca acabam. todos sentados, olhando pro chão, repetindo… “pelo menos ainda não é comigo”. mas já é. sempre foi.
e ainda assim, seguimos fingindo. fingindo que a democracia é sólida, que as instituições são firmes, que o mundo aprendeu com a história. fingindo que liberdade de expressão ainda existe quando já está em coma induzido. fingindo que justiça é possível quando a constituição é dobrada até virar origami decorativo. fingindo que a paz é viável quando a guerra é lucrativa demais pra acabar. o teatro global segue em cartaz, com atores ruins, plateia treinada e holofotes iluminando o vazio.
não é que o fascismo tenha voltado. é que ele nunca foi embora. trocou de roupa, ajustou o tom de voz, aprendeu a usar rede social. em vez de botas, tiktok. em vez de gritos, lives. em vez de prisões em massa, exclusões discretas. e nós, tão convencidos da nossa esperteza, batemos palma no tempo certo, como cães adestrados.
a tragédia não é o autoritarismo em si. é a nossa capacidade infinita de acostumar. acostumar com a liberdade sequestrada. acostumar com a impunidade como regra. acostumar com a guerra como paisagem. acostumar com o silêncio como prova de inteligência. acostumar até não restar nada além do hábito de sobreviver. porque no fim, o fascismo não precisa nos vencer… basta nos cansar. e nisso, ele já venceu. será?