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2025

a margem virou regra

esse fim de semana foi um daqueles em que a realidade esfrega a cara da gente no asfalto quente e pergunta… “é esse o topo da evolução humana?”. vi uma mãe com três crianças, cada uma num patinete elétrico que atinge 40 km/h, rindo, filmando, postando, como se estivesse criando pequenos ídolos do consumo instantâneo. sem capacete, sem noção, sem um fiapo de consciência. liberdade, diriam. essa palavra tão bonita, que já foi bandeira de revolução e hoje serve pra justificar idiotice em praça pública. liberdade pra morrer com estilo, pra criar filhos kamikazes com autoestima alta e senso zero de perigo.

mas não foi só isso. foi a sequência. o festival de “quase”. aquele cara que estaciona o SUV em cima da placa de “proibido estacionar” porque “é rapidinho”. a mãe que deixa o filho entrar no brinquedo do parque mesmo sem ter a altura mínima porque “falta só um pouquinho”. o casal que fura fila “só pra pagar rápido”. a humanidade virou uma colônia de “só um pouquinho”. a margem virou regra. e ninguém mais enxerga o ridículo de viver assim.

queria pedir um gin, mas até isso anda perigoso. as notícias de bebida batizada me lembram que até pra afogar o tédio é preciso estratégia de sobrevivência. então fiquei aqui, sóbrio, observando a coreografia da irresponsabilidade coletiva. gente achando que ser esperto é burlar regra, que ser moderno é ignorar limite, que ser pai ou mãe é virar cúmplice do delírio dos filhos. o “não” virou palavrão. a disciplina virou opressão. o bom senso virou artigo vintage.

essa mania de achar que todo limite é um atentado à liberdade me cansa. o ser humano contemporâneo se acha iluminado, mas não é mais que uma criança grande que aprendeu a dar desculpas sofisticadas pro próprio egoísmo. estaciona errado porque tá com pressa. finge que entende de segurança infantil, mas larga a cria em cima de um ‘brinquedo’ perigoso pra ganhar uns minutos de paz. e se der errado, a culpa é do destino, do sistema, de deus, de qualquer um, menos da própria negligência.

há uma elegância quase artística no modo como a gente se sabota. o mundo tá cheio de placas dizendo “proibido estacionar”, “altura mínima”, “use capacete”. a tradução é sempre a mesma… “tenha bom senso”. mas o bom senso virou um idioma morto. o ser humano só entende quando dói. e mesmo assim, aprende mal.

a cena toda me deu uma vontade absurda de rir e chorar ao mesmo tempo. porque é tudo tão patético e tão humano. a mãe filmando o perigo achando que é felicidade. o cara que estaciona errado achando que é esperto. o pai que ignora o limite achando que é corajoso. todos tentando provar alguma coisa pra ninguém, como se o universo tivesse tempo pra aplaudir a estupidez individual.

no fundo, é só medo disfarçado de ousadia. medo de ser o adulto que diz “não”. medo de enfrentar o olhar do filho frustrado, do outro motorista irritado, da própria mediocridade. então a gente se esconde atrás da palavra “liberdade” e chama o caos de autenticidade.

o resultado é esse zoológico civilizado onde todo mundo se acha consciente e ninguém percebe que o chão tá cheio de cacos. vivemos um tempo em que o “quase” virou filosofia de vida. quase responsável, quase atento, quase decente. o problema é que “quase” nunca foi o suficiente pra manter ninguém vivo.

e no meio de tudo isso, o mais cruel é que não dá pra odiar completamente. tem um traço de humanidade nessa burrice. esse desejo desesperado de viver sem freio, de acreditar que tudo vai dar certo, mesmo quando tudo prova o contrário. é trágico e bonito. e profundamente estúpido. o resumo perfeito do que somos.