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2024

as vozes na minha cabeça

não, eu não sou louco. longe disso. na verdade, seria loucura não ter vozes na cabeça. loucura seria viver em silêncio absoluto, um deserto mental onde nem mesmo o vento sopra, sem ninguém para discutir comigo ou me trazer um pouco de drama barato. eu tenho uma rádio interna funcionando 24 horas por dia, uma espécie de netflix particular onde cada voz tem sua hora e seu show.

quando algo extraordinário acontece, algo que parece um sopro de sabedoria divina, a voz é sempre dele: morgan freeman. profunda, calma, paternal. como se deus tivesse se dado ao trabalho de sussurrar diretamente no meu ouvido, só para que eu entendesse de uma vez por todas a resposta óbvia que estava bem na minha cara. “é assim, meu filho, aceite. não complique.” e eu, claro, acato. porque discutir com morgan freeman seria o auge do desrespeito.

a voz sarcástica, aquela que adora pegar o meu erro pela gola e esfregar na minha cara como um filhote mal treinado? essa soa como a jodie foster em ‘o silêncio dos inocentes’ — fria, precisa, impiedosa. ela não grita. só olha para mim, levanta uma sobrancelha e diz com uma calma assassina: “parabéns, gênio. mais uma vez você se superou.” e não há argumento que resista.

quando estou irritado, descontente ou pronto para um discurso inflamado, quem toma a palavra é o al pacino em ‘scarface’. aliás, que se dane a sutileza. ele vem rugindo, cuspindo as palavras, uma metralhadora de indignação pura: “você quer jogar comigo? você sabe com quem está lidando?” e lá estou eu, marchando pela sala, falando sozinho enquanto ameaço, no melhor estilo tony montana, o caos imaginário.

mas há também uma voz mais nostálgica, mais melancólica. um contador de histórias cansado que parece ter visto de tudo. um misto de tom waits e nick cave, uma voz rouca de quem fumou demais, bebeu mais ainda e ainda assim sobreviveu para contar. ela surge à noite, quando a casa está silenciosa, e sussurra contos sobre o que foi, o que poderia ter sido e o que nunca será. sempre com aquele peso poético de uma canção que você ouve no fundo do bar às três da manhã.

e claro, há a voz da dúvida. essa é a pior. não tem um rosto específico, porque é um ventríloquo habilidoso que se disfarça em qualquer um. um crítico sem identidade. às vezes soa como um amigo, às vezes como um professor, às vezes como eu mesmo. ela pergunta baixinho: “tem certeza? e se estiver errado? e se ninguém se importar?” é uma voz irritante, insistente, que sabe exatamente onde tocar para me deixar instável.

mas louco? não. eu não sou louco. minhas vozes têm personalidade, têm estilo, têm elenco premiado. um verdadeiro teatro mental com direito a drama, comédia, tragédia e um pouco de suspense. talvez eu até cobre ingresso um dia. porque, afinal, por que desperdiçar uma produção tão elaborada apenas comigo?