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2024

como tomo café…

me sento num café como quem ocupa um trono improvisado numa ópera barata. não um desses cafés meticulosamente planejados pra parecerem autênticos, com menus escritos à mão e plantas estrategicamente colocadas como se tivessem crescido ali por acidente. não, eu escolho aqueles lugares honestos, quase feios, onde o café tem gosto de mágoa e a mobília parece ter sobrevivido a uma guerra – mas mal. o tipo de lugar onde os donos desistiram de fingir que se importam. e eu? eu me sento, com minha xícara de café amargo e frio, e começo meu esporte favorito: dissecar as vidas das pessoas ao meu redor, transformando-as em personagens de histórias que elas nunca vão saber que existiram.

começo pelo homem de terno cinza, sentado sozinho, com uma pasta de couro que parece pesada demais para ele carregar. ele não está tomando café, mas whisky. às dez da manhã. na minha cabeça, ele é um advogado de segunda categoria que aceitou um trabalho que nunca deveria ter aceitado. algo sujo, envolvendo políticos e dinheiro vindo de lugares onde ninguém fala inglês. agora, ele está pagando o preço. literalmente. aquele homem de jaqueta preta no balcão? não está lá por coincidência. ele é uma sombra. um aviso. o advogado sabe que sua vida vale menos do que os números nos cheques que assinou. ele toma o whisky devagar, tentando decidir se pega o trem para casa ou foge para um país sem tratado de extradição.

na mesa perto da janela, uma mulher com um casaco vermelho, elegante, mas discreto. ela mexe no chá, mas não bebe. só olha para ele, como se estivesse esperando que algo acontecesse. ela carrega uma bolsa pequena, tão surrada quanto o café em que estamos. na minha versão, ela é uma ladra. não daquelas que invadem bancos ou casas de milionários, mas uma especialista em furtos quase imperceptíveis. carteiras, relógios, um colar que escorrega do pescoço de uma vítima desatenta. ela tem um olhar clínico, analisa o ambiente como um jogador de xadrez. mas hoje algo está errado. ela está hesitante. talvez tenha cruzado a linha com alguém que não deveria, talvez tenha roubado a pessoa errada. e agora, está esperando. pelo quê, ela não sabe. talvez uma saída. talvez um perdão que nunca vai chegar.

e aquele casal no fundo, tão quieto que quase desaparece no cenário? ele, com o rosto marcado pelo tempo, mãos calejadas, e ela, com olhos que parecem ter chorado muito mais do que deveriam. eles não dizem uma palavra, mas a tensão entre eles é palpável. na minha história, eles são cúmplices de um crime. algo terrível, algo que começou como uma solução fácil e se transformou em um pesadelo. talvez um assalto que deu errado. ou talvez algo mais sombrio. um corpo que eles não queriam matar, mas mataram mesmo assim. agora, estão presos um ao outro, ligados pelo tipo de segredo que corrói por dentro. eles não confiam mais um no outro, mas também não têm ninguém além de si mesmos. ela mexe no anel de casamento como se fosse uma algema. ele olha para a porta como se esperasse a polícia a qualquer momento.

o barista, claro, é outra peça desse tabuleiro. jovem, tatuagens nos braços, um bigode que provavelmente consome metade do salário mínimo em manutenção. mas o olhar dele não é blasé como os de outros baristas pretensiosos. é agudo, atento. ele está prestando atenção em tudo e todos, como um diretor de cinema capturando cada movimento da cena. na minha versão, ele não é só um barista. ele trabalha para alguém. um chefão do submundo, talvez. cada café que ele serve é um código. um “americano duplo” pode significar que a entrega chegou. um “cappuccino sem espuma”? um alerta de que algo deu errado. ele anota os pedidos num caderno que parece inofensivo, mas é um mapa das operações clandestinas que acontecem sob o nariz de todos.

e os turistas? sempre há turistas. um homem de meia-idade, camisa polo, e uma câmera pendurada no pescoço como uma coleira. sua esposa, com um sorriso nervoso e roupas que claramente foram escolhidas para parecer “descontraídas”. mas eles não estão ali para ver a cidade. não realmente. na minha história, ele é um investigador privado contratado para seguir alguém. talvez um político infiel, talvez um empresário que está escondendo dinheiro. mas ele é ruim no que faz. visível demais. ela, por outro lado, é quem realmente está no comando. enquanto ele tira fotos desajeitadas, ela observa os alvos, faz anotações mentais, corrige seus erros. eles são um time, mas não um bom. e eles sabem disso.

e eu? fico ali, no canto, com meu café amargo e frio, observando o desfile. porque, sejamos honestos, o homem de terno cinza não é nenhum advogado corrupto lutando contra o peso dos pecados; ele provavelmente só perdeu o emprego e está esperando o bar abrir. a mulher de casaco vermelho não é uma ladra com dedos leves, é só alguém que gosta de parecer misteriosa enquanto decide se pede mais chá ou sai para fumar um cigarro. as pessoas são assim, sempre menos interessantes do que parecem. mas é aí que entro.

sem mim, o barista não passa de um cara entediado que odeia seu trabalho. e os turistas? bem, eles continuam sendo turistas, nada pode salvar turistas. mas na minha versão, eles têm camadas, conflitos, segredos. na minha versão, o mundo é mais cruel, mais bonito, mais verdadeiro.

porque, no final das contas, a verdade é tediosa. ninguém quer saber que o homem no canto só está esperando um telefonema que não vai chegar. querem drama, sangue, conspirações. e eu dou isso a eles, pelo menos na minha cabeça. não porque eles mereçam, mas porque alguém tem que transformar esse mundo em algo que preste.