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2024

o cliente quase nunca tem razão

ah, o mantra do século 20: “o cliente tem sempre razão.” a pedra fundamental de toda uma geração de consumidores criados para acreditar que pagar por algo lhes confere não apenas direitos, mas uma espécie de imunidade divina. é a justificativa perfeita para transformar qualquer experiência de serviço em um espetáculo de tirania barata, estrelando o “cliente” – aquele pequeno déspota mal-informado, inchado de autoimportância e completamente sem noção do que está fazendo ou pedindo. porque, vamos ser honestos, o cliente quase nunca tem razão. ele só tem dinheiro. e, na maioria das vezes, nem isso direito.

essa filosofia maldita é o câncer silencioso do capitalismo de conveniência. foi ela que nos trouxe o cara que grita com a atendente do call center porque sua internet caiu, como se ela tivesse puxado o cabo de propósito para estragar o seu sábado. ou aquele que entra em uma loja de departamentos e transforma o vendedor em psicólogo, babá e saco de pancadas emocional porque “o atendimento deveria ser impecável” – enquanto ele mesmo não consegue nem dizer bom dia ou, sei lá, não ser um idiota completo. e quem nunca viu o clássico espetáculo do aeroporto, onde o cliente que perdeu o voo decide que é direito divino dele humilhar a atendente do balcão, porque, claro, ela controla o tráfego aéreo mundial diretamente de sua mesa de trabalho?

mas o mais insidioso dessa ideia de que o cliente tem sempre razão não é apenas o comportamento grotesco que ela incentiva. é o fato de que ela mina completamente qualquer possibilidade de diálogo real, de troca, de crescimento. porque, se o cliente está sempre certo, então ninguém mais pode estar. o especialista na área? não tem razão. o atendente que já viu essa situação mil vezes? não tem razão. o engenheiro que projetou o produto? também não. quem é que tem razão? o cliente, aquele especialista autoproclamado que leu meia dúzia de comentários na internet e acha que agora sabe mais do que qualquer profissional com anos de experiência.

e isso não para em lojas, empresas ou serviços. o vírus se espalhou para todos os aspectos da vida. professores que têm que aturar pais dizendo que o filhinho deles não precisa estudar matemática, porque “ele não gosta”. médicos que precisam ouvir palestras de pacientes que diagnosticaram a si mesmos no google e exigem tratamentos absurdos. designers gráficos que são obrigados a criar logos medonhos porque “o cliente quer que a fonte pareça mais… divertida.” (tradução: horrível.) é uma guerra constante entre quem sabe o que está fazendo e quem acha que sabe porque tem um cartão de crédito e uma opinião.

e por que isso acontece? porque vivemos em uma cultura que venera o consumo acima de tudo. o cliente é tratado como uma espécie de entidade sagrada, inquestionável, porque ele paga. e pagar é tudo que importa, certo? exceto que não é. pagar não te dá razão, assim como gritar com alguém não te faz mais inteligente. pagar te dá o direito de receber o produto ou serviço que foi prometido. ponto. não te dá o direito de ser um cretino, de ignorar a realidade ou de transformar o trabalho dos outros em um inferno.

então, aqui vai uma ideia revolucionária: e se o cliente não tivesse sempre razão? e se ele fosse apenas um humano como qualquer outro, capaz de cometer erros, de ser corrigido, de aprender? e se, em vez de reforçar essa ilusão de infalibilidade, começássemos a tratá-lo como alguém que, ocasionalmente, precisa ouvir um “não”? “não, senhor, seu filho precisa sim aprender matemática.” “não, esse logo vai ficar horrível.” “não, gritar com o atendente não vai trazer seu voo de volta.” talvez seja hora de perceber que o cliente não é deus. na maioria das vezes, ele é só um cara que precisa de um pouco mais de humildade – e, quem sabe, de um tapa metafórico de realidade.