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2024

a paulista

a avenida paulista não é só uma rua. é um organismo vivo, respirando, pulsando, cuspindo e engolindo gente como uma grande boca de concreto e vidro. não é um lugar para quem gosta de calma, não é para quem teme multidões. aqui, o tempo não passa, ele atropela. a paulista é onde a cidade se despedaça e se reconstrói todos os dias, como um mosaico caótico de vozes, buzinas, frituras de barraca de rua e discussões sobre startups em cafés com nomes minimalistas. e eu, um mero habitante dessa fera, acordo com ela e me deixo levar.

o começo: academia, suor e promessas vazias

minha manhã começa cedo porque a paulista exige. academia às sete. não porque sou disciplinado, mas porque preciso de algo que me desperte antes que o dia me esmague. desço do prédio e a cidade já está em movimento. a paulista nunca acorda, ela apenas muda de fase. os notívagos ainda perambulam, os primeiros entregadores já atravessam os cruzamentos como kamikazes de bicicleta, e os porteiros, esses heróis silenciosos, varrem calçadas que nunca ficam limpas.

na academia, encontro os mesmos rostos, o cara de terno que faz musculação em tempo recorde antes de uma reunião que provavelmente decide o destino de alguém, a mulher que corre na esteira como se estivesse fugindo da própria vida, o idoso que levanta peso com a paciência de quem já viu de tudo. suamos juntos, mas não nos falamos. cada um no seu transe, cada um preso na sua bolha de música alta e cansaço matinal.

saio dali desperto, não pelo exercício, mas pelo choque de voltar para a avenida já em plena atividade. os vendedores ambulantes montam suas barracas com a agilidade de quem já faz isso há anos. vendem desde lanches até óculos falsos, carregadores duvidosos, livros usados com dedicatórias de antigos donos. um café? sempre. mas qual?

o café: entre o requentado e o transcendental

a paulista tem dois tipos de café. o primeiro é aquele líquido preto queimado, servido num copinho de plástico por R$ 3 na banca de jornal. necessário, funcional, sem frescura. o segundo é o café de boutique, servido em xícaras minúsculas, com notas de caramelo e preços que fariam um europeu corar. gosto dos dois. um me mantém acordado, o outro me lembra que o mundo ainda tem luxo, mesmo no caos.

há algo de meditativo em beber café na paulista. eu paro por um instante, observo o fluxo de pessoas, e a cidade me engole de novo. trabalhadores apressados, turistas tirando fotos do masp, uma senhora que vende doces caseiros na calçada. tudo se move rápido, menos eu.

o trabalho: ao lado de casa, mas em outro planeta

a benção (ou maldição) de trabalhar ao lado de casa me poupa do inferno do trânsito paulistano, mas não me protege da brutalidade da rotina. atravesso a rua e troco de mundo. as calçadas lotadas, os motoqueiros entregando pedidos, os grupos de executivos falando de metas inalcançáveis, tudo me envolve. entro no prédio e o burburinho muda. dentro do meu escritório olho pela janela e vejo dentro dos escritórios uma farsa organizada. ali, finge-se controle, eficiência, planejamento. mas basta olhar para o horizonte para ver a verdade, a cidade lá fora não se importa com prazo, KPI’s, e-mails urgentes. a cidade segue, indiferente.

o meio do dia: entre mochilas escolares e o cheiro de almoço

perto do meio dia, saio para levar meu filho à escola. e nesse momento, vejo outro rosto da paulista… o das crianças, dos pais equilibrando mochilas e copos de café, das babás empurrando carrinhos de bebê. por um breve instante, a avenida perde sua dureza. vejo pequenas mãos segurando lancheiras, ouço risadas, sinto a presença de algo raro por aqui, inocência.

mas logo, o relógio me empurra de volta ao ritmo normal. e então, o cheiro de comida começa a se espalhar pela avenida. é um convite e uma tortura. o cheiro de churrasco vindo de um restaurante tradicional, o aroma de alho e óleo de uma cantina escondida, o vapor das marmitas sendo abertas nos bancos da praça do ciclista. na paulista, almoçar é um ato de sobrevivência. você pode escolher a comida afetiva de um boteco, um prato executivo servido com pressa ou um sushi minúsculo, cobrado a peso de ouro. a cidade te dá opções, mas não tempo.

eu tenho meus refúgios. que mantenho em segredo, até de vocês, onde o garçom me chama pelo nome e ninguém pergunta se você quer a conta antes de terminar de comer. nessas horas, a paulista me dá um raro presente, um momento de pausa.

a tarde: a cidade febril

volto ao escritório, mas a paulista segue sua dança. o barulho da obra ao lado, a multidão cruzando a avenida como um enxame, os artistas de rua que começam a ocupar seus lugares. o cara que toca sax na frente do masp, o pintor que expõe seus quadros na calçada, a mulher que distribui panfletos sobre um culto que promete salvar sua alma (e esvaziar sua carteira). o pessoal de colete laranja pedindo um minuto para doações que salvarão o mundo… tudo faz parte da cena.

lá pelas quatro, preciso sair para uma reunião. ando pela calçada e observo os rostos. vejo pressa, cansaço, expectativa. vejo pessoas que parecem existir apenas para correr de um ponto ao outro. vejo casais discutindo, ambulantes contando o dinheiro do dia, adolescentes com roupas que berram contra a normalidade. vejo tudo. e ao ver, me sinto parte.

a noite: a paulista troca de pele

quando o sol se põe, a avenida muda. os escritórios se esvaziam, os bares se enchem. os vendedores de comida de rua tomam as calçadas. espetinhos de carne assam em grelhas improvisadas, o cheiro de pipoca invade o ar. os ônibus seguem lotados, levando sonhos e cansaço para todos os cantos da cidade.

os artistas se multiplicam. dançarinos improvisam coreografias na esquina, músicos fazem jam sessions em plena calçada, e sempre tem alguém recitando poesia para quem quiser ouvir. uma pequena manifestação, reivindicando ação, paralisa um dos lados da avenida e eu caminho por tudo isso, absorvendo cada detalhe.

antes de dormir: a paulista nunca para

volto para casa, mas a paulista não dorme. lá embaixo, um casal termina a noite de bar aos berros. um ciclista corta a avenida como se fosse dono dela. um grupo de corredores cruza pelas calçadas com pausas estratégicas para selfies. alguém grita assalto e mais um celular se vai. entregadores fazem sua última corrida. e eu, da janela, observo.

amanhã, tudo isso acontece de novo. e eu estarei aqui. porque, no fim das contas, sou parte desse caos. sou um filho da paulista. e não há outro lugar no mundo onde eu preferiria estar.