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2025

meu innie teria matado meu outie no primeiro dia

meu innie teria me matado no primeiro dia. sem hesitar. sem drama. sem monólogo final. ele teria pegado o objeto mais pesado da sala, talvez aquela merda de teclado corporativo cinza que fede a desespero e dedos suados e esmagado meu crânio antes mesmo de entender completamente o que estava acontecendo. porque, sejamos honestos, qual ser humano em plena consciência escolheria esse destino? acordar num escritório, sem passado, sem futuro, sem nada além de um crachá e um chefe com sorriso de psicopata? é um pesadelo projetado especificamente para assassinar qualquer fagulha de individualidade que ainda restava em você.

a grande piada de severance é que ela não é ficção. é um documentário que ainda não foi oficialmente reconhecido como tal. porque, no fundo, quem aqui já não vive essa merda? quem aqui nunca bebeu além da conta numa sexta-feira tentando afogar o terror existencial de saber que, em poucos dias, estaria de volta à cela? quem aqui nunca sentiu aquele leve deslocamento da realidade quando se viu no espelho antes do expediente, arrumado, penteado, uniformizado como um condenado prestes a cumprir mais uma pena?

não foi a lumon que inventou essa separação. ela só deu um nome para o que já existe. innie e outie. trabalho e vida. servidão e ilusão de liberdade. a diferença é que no mundo real, essa transição é feita sem cirurgia, sem tecnologia de ponta, sem nada além do bom e velho conformismo e um salário que nunca chega até o fim do mês.

é fascinante ver como os idiotas online abraçaram esse conceito como se fosse um jogo divertido. “meu innie trabalha enquanto meu outie bebe” escrevem, rindo, como se isso não fosse a descrição exata do ciclo vicioso em que estão presos. o aeroporto de denver postou… “seu innie deveria reservar férias para seu outie. vocês dois merecem”. vocês dois. como se houvesse uma separação real. como se uma parte de você não estivesse sempre carregando o peso da outra. como se toda essa divisão não fosse apenas um truque mental patético para te convencer de que vale a pena vender 90% da sua vida para tentar viver 10%.

já trabalhei em lugares onde todo mundo parecia ter passado pelo procedimento da lumon. os olhos mortos, os sorrisos automáticos, as risadas vazias nas reuniões inúteis. o cara que dizia “adoro meu trabalho” enquanto mandava currículo para qualquer outra empresa. a mulher que postava sobre “ser grata pela oportunidade” enquanto engolia rivotril no banheiro. o estagiário que chegou cheio de energia e três meses depois já estava sentado na copa, encarando o nada, tomando um café morno e aceitando silenciosamente que seus sonhos estavam morrendo. e eu, fingindo que meu cinismo era uma forma de resistência, mas sabendo, lá no fundo, que eu estava tão fodido quanto todos eles.

quando assisti ao primeiro episódio de severance, fiz algo que nunca faço. pausei e fui beber. não porque a série é pesada ou porque precisava de tempo para processar. mas porque foi a primeira vez em muito tempo que uma história me fez encarar, sem filtros, o quão absurda é a nossa realidade. precisei de um gole para não gritar.

o que realmente me assusta não é a tecnologia fictícia da lumon. é o fato de que, se ela existisse, haveria fila de espera para o procedimento. porque quem não gostaria de desligar completamente das 8h às 18h? quem não trocaria a consciência constante desse inferno por uma existência simplificada, sem angústia, sem noção de tempo, sem domingos recheados de ansiedade e morte lenta?

a cada episódio que acaba fico olhando para a tela preta, ouvindo o silêncio do meu próprio pensamento. talvez estivesse esperando alguma resposta, alguma saída, alguma dica secreta que me dissesse como escapar disso tudo. mas não veio nada. só a certeza de que amanhã, assim como hoje, assim como todos os dias antes desse, eu levantaria da cama, colocaria minha máscara, beberia café suficiente para parecer funcional e me jogaria, mais uma vez, no ciclo. sem cirurgia, sem botão de desligar, só a boa e velha aceitação de que estamos todos presos.

e é aí que está a verdadeira tragédia. porque não é só sobre trabalho. nunca foi. é sobre essa aceitação passiva de um destino que nos foi imposto antes mesmo de termos idade para entender o que estava acontecendo. estudamos, crescemos, somos condicionados a acreditar que sucesso é sinônimo de um bom emprego, um salário decente, estabilidade. que a vida é essa sequência de concessões, de trocas, de pequenas mortes diárias justificadas por um ou outro benefício ocasional.

e quando finalmente nos damos conta da farsa, já estamos enterrados até o pescoço em boletos, expectativas alheias e obrigações que nunca pedimos para ter. não há para onde correr. não há botão de saída. só resta fazer o que todos fazem. apertar os botões, responder os e-mails, fingir que os prêmios ridículos da empresa importam, aceitar as migalhas de felicidade entre uma reunião e outra e esperar que algum dia, talvez, isso faça sentido.

e, mais do que tudo, vi a mim mesmo. vi o cara que jurava nunca se vender, que ria da ideia de um emprego tradicional, que dizia que preferia morrer a ter uma vida assim. vi esse cara acordar um dia e perceber que, sem nem notar, tinha cruzado a linha. que já estava dentro do sistema, que já havia feito as pazes com ele, que já estava justificando tudo aquilo com as mesmas desculpas que sempre desprezou.

talvez seja por isso que severance incomoda tanto. porque não estamos apenas assistindo a um programa de ficção bem escrito. estamos vendo, com uma clareza brutal, como chegamos até aqui. e pior. como não temos ideia de como sair.

e enquanto isso, mark scout vai continuar entrando naquele elevador, apagando e acendendo como um boneco de corda, exatamente como nós fazemos toda vez que fingimos que essa vida é normal. helly vai continuar tentando escapar de uma prisão que, no fundo, ela mesma escolheu, assim como a gente, que passou anos engolindo o discurso de que um bom emprego é a única saída para não acabar na sarjeta. irving vai continuar pintando paredes escuras, tentando dar sentido a memórias que nunca deveria ter, do mesmo jeito que a gente tenta afogar o tédio em hobbies que jamais vão preencher o buraco que o trabalho cavou dentro de nós. dylan vai continuar segurando botões, segurando portas, segurando qualquer migalha de poder que o sistema lhe dá, acreditando, nem que seja por um segundo, que isso significa alguma coisa.

e nós? nós vamos continuar acordando com o despertador, tomando café forte o suficiente para parecer funcional, fingindo que a última noite de insônia não foi causada pela ansiedade do trabalho. vamos continuar mandando mensagens no whatsapp dizendo “só mais essa semana e depois melhora”, como se isso já não fosse a mentira que contamos para nós mesmos há anos. vamos continuar aplaudindo colegas que se matam de trabalhar enquanto, por dentro, rezamos para que pelo menos um deles tenha coragem de largar tudo e nos provar que outra vida é possível.

e no final do dia, quando estivermos sentados no sofá, exaustos demais para aproveitar o tempo que nos resta, vamos assistir a severance, apontar para a tela e dizer “puta que pariu, que série foda”. vamos rir, vamos twittar sobre como é genial, vamos compartilhar memes de innie e outie como se fosse só entretenimento. mas então o domingo vai chegar, aquela dor no peito vai bater, o relógio vai avisar que é hora de dormir e, na manhã seguinte, vamos entrar no elevador. e vamos apagar. e vamos acender. e vamos continuar.

e é por isso que meu innie teria me matado sem pensar duas vezes. sem remorso, sem hesitação, sem nem um aviso prévio. teria me olhado com aquele desprezo gelado, aquele olhar vazio de quem entendeu rápido demais a merda em que foi jogado, e me despachado como um chefe corta um funcionário na surdina de uma sexta-feira à tarde. e eu mereceria. porque fui eu que vendi essa vida para ele. fui eu que aceitei apertar os botões, sorrir nas reuniões, me enterrar nesse ciclo sem sentido e ainda me convencer de que era o certo a fazer. ele teria acabado comigo de forma limpa e eficiente, e depois voltado para sua mesa, pronto para mais um dia de trabalho. e a única diferença entre ele e muitos de nós é que ele pelo menos teria feito alguma coisa a respeito.