
eu não cresci com incenso queimando na sala.
nem com retrato de antepassado olhando da estante. na minha casa, morte era aquilo que se escondia atrás de cortina branca, que se resolvia com flores compradas às pressas e uma oração decorada. morreu? enterra. chora. esquece. toca a vida.
ninguém me ensinou que o silêncio também fala.
ninguém me ensinou que os mortos, quando bem cuidados, não vão embora, eles ficam. e protegem.
foi só depois que conheci minha esposa que tudo começou a mudar.
ela me mostrou, sem discurso, sem tentar me converter, um jeito de viver onde os vivos e os mortos dividem a mesma mesa. uma cultura onde ancestral não é só nome em lápide, mas presença ativa, constante.
em okinawa, os mortos são tratados com uma dignidade que faria muita gente viva corar.
ela me levou um dia à casa da avó. simples. altar no canto. tudo limpo, contido, delicado. um pequeno espaço com tigelas, fotos antigas, um copo de café, arroz ainda quente.
e silêncio.
mas não aquele silêncio de quem não tem o que dizer.
era o silêncio de quem está dizendo tudo, sem abrir a boca.
foi aí que ouvi, pela primeira vez, sobre o ritual de okinawa.
não como uma lição. mas como quem me confia um segredo de família.
em okinawa, quando alguém morre, não se encerra a biografia, inicia-se um processo espiritual.
nessa cultura, aprendi que a morte não leva ninguém embora. ela apenas muda a forma de presença.
o nome disso? sosen suuhai. o culto aos antepassados. mas “culto” aqui não tem nada a ver com adoração cega ou misticismo barato, tem a ver com continuidade. com reconhecer que a vida é um fio longo, e que cada um de nós só existe porque alguém veio antes e segurou esse fio com firmeza.
os okinawanos sabem disso. por isso, quando alguém morre, não se apagam as luzes nem se fecha a porta. pelo contrário, abre-se um processo. um ritual de transição que dura 33 anos. trinta e três anos. você ouviu certo. num mundo em que a gente mal lembra o que comeu no almoço da semana passada, aqui se honra alguém por três décadas, com missas, oferendas, oração e presença constante. o morto vira um espírito em ascensão. uma entidade em formação. e, se bem cuidado, com o tempo, vira parte da “raiz-tronco” da família. não um fantasma, mas um alicerce. uma presença silenciosa que sustenta tudo.
e é aí que a ficha cai.
não estamos falando de religião. estamos falando de pertencimento. de identidade. de saber de onde se veio pra entender pra onde se vai. e de fazer isso com uma elegância que se aprende em casa. no altar. no silêncio.
os 49 primeiros dias são de intensidade absoluta.
dizem que o espírito ainda está aqui, vagando com os mesmos desejos, confusões e saudades de quando vivia.
é por isso que a cada sete dias, uma cerimônia.
sete no total.
comida feita com reverência, incenso aceso como quem acende um farol, palavras repetidas como mantras que costuram os mundos.
cada oferenda é um gesto de compaixão… “você ainda sente fome. você ainda pertence. estamos aqui.”
no 49º dia, queima-se o ihai, a tabuleta que representa o espírito em trânsito.
é a passagem.
não para longe, mas para o invisível.
o espírito cruza o limiar.
mas ainda precisa evoluir.
a partir daí, entra-se no tempo longo.
o tempo da purificação. da sublimação. da leveza que se alcança com o tempo, com a lembrança, com o amor que não se quebra.
no 1º ano de falecimento, a primeira grande cerimônia.
é como reafirmar o laço “não esquecemos de você. ainda caminhamos juntos.”
no 3º ano, o espírito começa a se libertar do peso da matéria. é quando dizem que ele começa a enxergar com clareza, a compreender a nova dimensão em que habita.
no 7º ano, o espírito começa a se tornar luz. não mais uma presença pesada, mas um ponto de orientação.
no 13º ano, é como se ele começasse a ser parte do tempo. já não precisa mais das mesmas oferendas, mas ainda é alimentado pelo que mais importa, a memória viva.
no 25º ano, como hoje, o espírito já está tão fundido à linhagem da família que é difícil separar lembrança de legado.
o que ele foi se confunde com o que a família é.
ele está no gesto da neta, no altar…
e por isso a cerimônia de hoje teve tanto peso.
o ojīchan, o avô da minha esposa, partiu há exatamente 25 anos.
mas dizer “partiu” é quase um erro.
porque hoje, ali diante do altar, ele estava presente.
vivo na fé silenciosa.
na lágrima contida da minha esposa.
no cheiro dos doces japoneses que preencheu a casa como se dissesse “sim, nós lembramos.”
e então virá o 33º ano.
o último rito.
não de fim, mas de consagração.
é nesse ponto que o espírito atinge o ápice da purificação.
tornou-se raiz.
tronco.
guia invisível.
não precisa mais ser chamado, porque já está em tudo.
na brisa que atravessa o quintal.
no bebê que nasce saudável.
no negócio que dá certo sem explicação.
na paz que chega de repente, num dia comum.
essa espiritualidade okinawana não grita, não exige, não ameaça.
ela apenas está.
firme. silenciosa. elegante.
e hoje, depois de ver tudo isso, depois de viver isso ao lado da família dela, minha família, eu não tenho mais dúvidas.
os okinawanos sabem algo que nós esquecemos.
eles sabem que viver de verdade é continuar cuidando, mesmo depois.
que o amor que sobrevive ao tempo é o que realmente molda uma família.
e que há mortos que, quando bem cuidados, não se tornam passado.
se tornam eternos.