
eu vi um bebê reborn na rua.
não num evento, não numa exposição esquisita, não como peça de museu experimental sobre solidão urbana.
na rua. terça-feira. quatro da tarde.
ao vivo. e a cores.
uma mulher adulta, vestida como quem saiu do salão e não tem contas vencendo, andava com um bebê nos braços. cabeça inclinada, sorriso suave, aquele olhar bobo de quem encontrou sentido na vida.
mas tinha algo errado.
eu olhei de novo. o bebê não se mexia.
nem uma piscadinha, nem um reflexo de sol no olho, nada.
a pele era perfeita demais.
plástica demais.
clínica demais.
eu congelei por dois segundos, e nesse curto espaço de tempo, meu cérebro escaneou três hipóteses:
1. o bebê tá morto e ninguém percebeu.
2. é um sequestro em câmera lenta.
3. o fim da humanidade chegou e eu não recebi o memorando.
a resposta era pior.
era um boneco.
um bebê reborn.
feito com silicone, vinil e delírio emocional.
uma réplica grotescamente detalhada daquilo que um dia foi a coisa mais humana do mundo… um recém-nascido.
só que sem alma.
eu fiquei parado. observando.
ela ajeitava a touquinha do boneco com um cuidado de maternidade premiada.
dava tapinhas leves nas costas.
balançava os quadris como quem embala o próprio útero.
e o pior… falava com ele.
com ele, entenda.
não com “isso”.
não com o “boneco”.
com o filho imaginário, o símbolo terapêutico, a obra de arte emocional que agora respira apenas no feed do Instagram e no coração da carência.
e o mundo ao redor?
ignorando.
passando.
como se fosse uma terça-feira comum.
como se não estivéssemos diante de uma cena que resume perfeitamente a queda vertical da sanidade moderna.
porque é isso que é o bebê reborn…
um sintoma.
um grito silencioso de uma sociedade que perdeu a mão, o filtro, o tato.
uma sociedade que olha pro afeto e pensa…
“e se eu pudesse tirar tudo que incomoda nele?”
chorar?
não precisa.
crescer?
pra quê?
ser real?
melhor não.
é o filho ideal.
feito sob medida pra uma era onde o “parecer” vale mais que o “ser”.
onde amar alguém de verdade virou tarefa arriscada demais… porque exige presença, escuta, frustração, erro, cheiro de leite azedo e noites mal dormidas.
então a gente inventou o reborn.
um bebê que não te pede nada.
não exige noites sem dormir.
não joga a verdade na tua cara aos 17 anos, nem te chama de hipócrita, nem se muda pra uma comunidade de rave aos 19.
ele só existe ali, quietinho, como o altar portátil do teu autoengano.
e olha, eu entendo.
de verdade.
o mundo tá caótico.
o toque humano virou ameaça.
os vínculos estão todos em crise.
a solidão ficou sexy.
e a ideia de ter algo que dependa de você, te olhe nos olhos e diga “me ajuda”… assusta.
então, por que não um bebê fake?
por que não amar uma coisa que não pode fugir?
o reborn é um afeto sem risco.
uma carência com planejamento.
é o tipo de relação que nunca te decepciona, porque ela não existe.
e é justamente por isso que funciona.
porque esse boneco, esse projeto de filho feito em fábrica e embalado com fita mimosa, diz muito mais sobre nós do que qualquer manual de psicologia moderna.
ele revela uma geração com medo da dor, do imprevisível, do humano.
uma geração que prefere uma mentira bem pintada a uma verdade feia.
que abraça plástico e chama de paz.
que embala silicone e chama de amor.
e a mulher ali?
seguia andando.
orgulhosa.
plena.
cercada de olhares de aprovação, alguns até de inveja.
como se ela tivesse descoberto o segredo do afeto perfeito.
e talvez tenha.
se o segredo for esse…
remova tudo que é real, e pronto. ninguém se machuca.
eu fiquei ali parado.
rindo.
sozinho.
como quem acaba de entender a piada mais triste do século.
porque aquele bebê, nos braços dela, era o produto final de uma cultura que não quer mais sentir nada que não venha com garantia estendida.
o afeto foi domesticado.
a maternidade virou performance.
e a dor, agora, é coisa que se resolve com delivery.
e você ainda acha que o mundo não acabou.
meu amigo e amiga…
o mundo já era.
só esqueceram de desligar a luz.