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2025

anne…

vendo tudo que aconteceu nesse final de semana nos eua, só uma coisa me veio à mente…

coisas terríveis estão acontecendo lá fora. a qualquer hora do dia ou da noite, pessoas pobres e indefesas estão sendo arrastadas para fora de suas casas. elas só podem levar uma mochila e algum dinheiro, e mesmo assim, são roubadas desses pertences no caminho. famílias são desfeitas; homens, mulheres e crianças são separados. crianças voltam da escola e descobrem que seus pais desapareceram.

anne frank, 1943.

e aqui estou eu, décadas depois, no conforto artificial do século xxi, olhando pra tela, comendo qualquer porcaria que finjo chamar de jantar, e pensando nisso como se fosse uma legenda poética em meio ao apocalipse. a diferença é que agora temos wi-fi e delivery de sushi, e o horror vem em alta definição, direto na sua timeline, embalado num formato fácil de digerir entre um story e outro. a mesma brutalidade, só que agora com filtro de instagram e legenda em fonte cursiva… “rezando por todos”.

anne falava de nazistas. a gente fala de “forças de segurança”. chamamos de “operações”, “deportações”, “defesa de fronteiras”, e dormimos tranquilos porque trocamos a suástica por uma bandeira nova e um discurso mais bem ensaiado. é a velha crueldade. ninguém mais precisa levantar a voz ou marchar em formação… basta clicar, votar, curtir, e o trabalho sujo acontece por nós.

fico me perguntando se, lá do esconderijo dela, anne teria acreditado que o futuro seria isso… um planeta cheio de gente informada, indignada, articulada, e completamente impotente. gente que sabe de tudo em tempo real, mas que não se levanta nem da cadeira. que vê vídeos de crianças sendo arrancadas dos pais, comenta “que absurdo” e logo em seguida abre o aplicativo de comida. o estômago humano é uma maravilha, cabe o jantar e o horror no mesmo espaço.

a verdade é que o mundo não ficou mais cruel. ele só ficou mais eficiente. o ódio agora é automatizado, terceirizado, burocratizado. não precisa mais de monstros berrando em praças públicas, basta um formulário, um drone, uma desculpa qualquer. o resultado é o mesmo… corpos desaparecendo, vozes caladas, e um silêncio conveniente cobrindo tudo.

e nós, os espectadores morais, nos consolamos com palavras bonitas. dizemos “nunca mais” como se fosse um mantra, mas o que realmente queremos dizer é “só não aqui, só não comigo”. porque é fácil sentir compaixão quando a dor tem legenda e tradução. difícil é olhar pro espelho e admitir que a gente vive num sistema que precisa do sofrimento alheio pra continuar funcionando.

anne escrevia sobre esperança, porque era a única coisa que ela tinha. eu, sinceramente, não sei mais o que escrever. talvez esperança hoje seja um luxo para quem ainda acredita em narrativas de redenção. eu só vejo um looping grotesco, uma humanidade que se acha melhor que seus antepassados porque tem carros elétricos e podcasts, mas continua fazendo fila de refugiados, separando crianças de pais, batendo continência pra covardes de terno.

e o mais perverso é que tudo isso parece perfeitamente normal. o horror virou ruído de fundo. enquanto anne se escondia com medo de passos na escada, a gente vive escondido atrás de telas, com medo de perder o sinal. talvez o grande progresso da humanidade seja esse, aprendemos a ignorar o sofrimento com eficiência digital.

anne, você estava certa. coisas terríveis estão acontecendo lá fora. só que agora elas acontecem com comentários, estatísticas e patrocínio. e a gente assiste tudo com a mesma expressão entediada de quem espera o próximo episódio.

o problema nunca foi a escuridão. o problema é que aprendemos a ver no escuro e gostamos da vista.