
tatuagem não é ornamento, não é acessório, não é detalhe estético que você escolhe como quem decide a cor do carro ou o sabor da pizza. tatuagem é declaração de guerra contra a neutralidade. é um recado impresso na pele, feito de dor, suor e agulha, que grita “eu estive aqui” com mais convicção do que qualquer foto ou lembrança guardada numa gaveta.
o momento em que a máquina liga já muda o ar. aquele zumbido metálico é como a trilha sonora de um ritual profano. você sabe que não tem nada de transcendental acontecendo ali, mas ao mesmo tempo sente que algo está sendo alterado em você. não porque sua alma ficou mais leve, mas porque a carne está sendo atravessada. a dor vem em ondas, constante, quase hipnótica. e no meio dela você se pega pensando… é isso, estou imprimindo quem eu sou no meu próprio corpo. não há como ser mais honesto que isso.
a tatuagem não precisa de explicação. quem tenta justificar cai sempre no ridículo… “é homenagem”, “é minha força interior”, “é símbolo da liberdade”. bobagem. a tatuagem em si já é o significado. o ato é maior que o desenho. pode ser uma obra-prima ou um borrão mal feito numa madrugada, o que importa é que foi escolhido. o desenho é detalhe. o essencial é a marca.
com o tempo, elas se tornam capítulos visíveis de uma autobiografia torta. cada uma traz o cheiro, o som e a memória do momento em que nasceu. algumas me enchem de orgulho, outras me dão vergonha, mas todas são minhas. e é exatamente por isso que funcionam. não são medalhas, são cicatrizes com estilo. a tatuagem não embeleza, denuncia. denuncia quem eu fui, o que eu pensei, as merdas que vivi. é sinceridade estampada na pele, sem filtro, sem edição.
e o que eu mais gosto é que a tatuagem envelhece junto comigo. ela não fica intacta, brilhante, congelada no tempo. ela racha, borra, perde a nitidez, acompanha a decadência do corpo. é memória em decomposição, e nisso há algo profundamente humano. porque não é sobre eternidade, é sobre rastro. a tatuagem é prova viva de que estive em movimento, que passei, que fiz.
não tatuei pra me diferenciar. não tatuei pra parecer mais interessante. tatuei porque não aceito a ideia de corpo vazio, pele muda, superfície neutra. tatuagem é barulho, é sujeira, é grito impresso em carne. e mais… é prazer perverso em ver o corpo carregando as minhas decisões como tatuagens carregam a tinta. boas ou ruins, elas estão ali.
a vida já deixa marcas que você não pede… cicatriz de bisturi, queda de bicicleta, ruga que aparece sem aviso. a tatuagem é a única marca que você escolhe. a única cicatriz que você chama de sua. é a prova de que, pelo menos uma vez, você decidiu o que ficaria gravado no corpo e aceitou a consequência sem drama.
quando penso nas minhas tatuagens, não vejo ornamento. vejo diários sem palavras, vejo mapas da minha própria estupidez e dos meus poucos acertos. vejo carne rabiscada que não tem medo de assumir “eu estive aqui, eu fui isso, eu fiz essa escolha”. e isso basta. não é pra ser bonito, não é pra ser profundo. é pra ser verdadeiro.
e no dia em que eu virar pó, que meus ossos apodrecerem, que a pele se for ainda assim, até o último segundo, vou carregar comigo o testemunho desses rabiscos. não como troféu, mas como cicatriz voluntária. e nesse mundo de promessas rasas e memórias descartáveis, não consigo pensar em algo mais honesto do que isso.