
quando eu era moleque, o quarto era meu vietnã.
nada funcionava.
nada fazia sentido.
era tudo barulho, bagunça e sobreposição de crises.
o abajur pendurado por um fio,
pilha de roupa misturada com livro de escola,
resto de lanche embrulhado num guardanapo dentro da gaveta de meias,
e um pôster do pulp fiction amarelado me olhando como se dissesse…
“boa sorte, otário.”
e eu achava que era parte da estética, do charme.
o mito do caos criativo.
como se viver na bagunça fosse sinal de genialidade latente, e não de falta de noção básica e um leve toque de delírio juvenil.
por anos fui esse personagem.
fingindo que me encontrava na confusão.
mas a verdade é que a confusão me engolia.
até que um dia eu cansei de tropeçar em coisas que nem sabia que estavam ali.
hoje o quarto virou memória.
e o estúdio virou minha fortaleza.
é aqui que eu trabalho.
é aqui que eu penso.
é aqui que a bagunça tenta entrar.
mas não passa.
porque hoje, aos quarenta e poucos anos, eu sigo minhas próprias regras.
criei minhas regras.
baseado em frustração, tentativa, erro, erro de novo, e finalmente…
acerto.
meus cinco princípios.
minha doutrina do caos contido.
1. nada de pilhas. e se precisa de duas mãos pra acessar, tá sabotando sua própria dignidade.
a primeira coisa que aprendi quando montei o estúdio foi que pilhas são traiçoeiras.
bonitinhas por fora, desastrosas por dentro.
tipo colega de trampo falso.
no meu quarto, eu empilhava tudo, apostila em cima de sketchbook, livro de arte em cima de caixa de fita cassete, camiseta em cima de revista em quadrinho.
funcionava?
funcionava até você tentar puxar qualquer coisa de baixo e descobrir que tinha criado a versão doméstica do colapso estrutural.
hoje no estúdio, não empilho nada que não seja idêntico.
se não for exatamente igual, não merece estar junto.
organização é segregação funcional, com orgulho.
e mais…
tudo tem que sair com uma mão só.
porque a outra tá ocupada, seja segurando o mouse, o café, ou só a vontade de desistir de algum projeto.
2. kits. cada um com sua função. cada item com seu pelotão. e a gaveta do caos sob vigilância armada.
quando era jovem, tudo ia parar na gaveta da escrivaninha.
tudo.
desde moeda antiga até fone de ouvido estragado.
eu chamava de “meu sistema”.
hoje eu chamo de “desordem institucionalizada com verniz de negação.”
no estúdio, eu não tenho mais desculpas.
então criei kits.
kit de som.
kit de elétrica.
kit de gravação.
kit do “se tudo der errado e precisar improvisar com fita e um clips”.
cada um vive numa caixa identificada.
cada item volta pro seu lugar.
não há perdão para a migração.
tirou, usou, devolve.
e sim, ainda tenho minha gaveta do caos.
porque eu sou humano.
mas ela é pequena.
frequentemente vasculhada.
e nunca, NUNCA, recebe coisa importante.
3. talismãs organizacionais, os santos da trincheira. se um some, o dia para.
ninguém sobrevive sem amuleto.
os meus são ferramentas.
simples. discretas. letais contra o caos…
- post-it – ultraaderente, inquestionável.
- clipe de fichário – gruda o mundo. já salvou contratos e desespero.
- caneta preta com ponta 0.5 – precisa, limpa, direta.
- gancho de metal pendurado na parede – guarda o fone, o cabo, o passado.
esses não vão pra gaveta.
ficam ao meu alcance.
no altar.
linha de frente.
quando um desaparece, eu não continuo.
eu paro o mundo e procuro.
porque perder um desses é abrir uma brecha na muralha.
4. prateleira não é estética… é estratégia. e se não construiu a sua, tá ajoelhando pro caos.
lembro da primeira vez que fiz uma.
não comprei pronta.
fiz.
martei, errei, medi torto, furei mal, mas fiz.
e quando coloquei a primeira caixa em cima, senti algo parecido com a sensação de finalmente ter uma cama decente depois de anos no colchão torto.
hoje cada prateleira no estúdio é território conquistado.
cada uma carrega uma função.
e o que não tem prateleira, fica no chão do inferno.
você quer organizar sua vida?
construa uma prateleira.
vai errar?
sim.
mas errar é o preço da soberania. e se não quiser construir, compre. mas tenha prateleiras.
5. personalização não é charme. é sobrevivência disfarçada de gênio torto.
nada aqui é de loja chique.
nada foi feito pra mim.
então hackeio tudo.
adaptei uma caixa em porta-fita.
usei embalagem pra segurar cabos.
reaproveitei um varal pra pendurar ferramentas.
personalizar é cuspir na cara do “pronto pra usar”.
é dizer “não me serve, então eu ajusto.”
e cada objeto que adaptei me lembra…
o estúdio é meu.
o sistema é meu.
a técnica é minha.
hoje vivo em trincheira funcional.
meu estúdio funciona.
e quando a bagunça tenta voltar,
como um velho conhecido batendo à porta com cara de “só vim visitar”,
eu olho pro meu gancho, minha prateleira, meu post-it
e penso:
“a guerra não acabou.
mas aqui, pelo menos aqui,
sou eu que mando.”