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2025

organização

quando eu era moleque, o quarto era meu vietnã.
nada funcionava.
nada fazia sentido.
era tudo barulho, bagunça e sobreposição de crises.

o abajur pendurado por um fio,
pilha de roupa misturada com livro de escola,
resto de lanche embrulhado num guardanapo dentro da gaveta de meias,
e um pôster do pulp fiction amarelado me olhando como se dissesse…
“boa sorte, otário.”

e eu achava que era parte da estética, do charme.
o mito do caos criativo.
como se viver na bagunça fosse sinal de genialidade latente, e não de falta de noção básica e um leve toque de delírio juvenil.

por anos fui esse personagem.
fingindo que me encontrava na confusão.
mas a verdade é que a confusão me engolia.
até que um dia eu cansei de tropeçar em coisas que nem sabia que estavam ali.

hoje o quarto virou memória.
e o estúdio virou minha fortaleza.

é aqui que eu trabalho.
é aqui que eu penso.
é aqui que a bagunça tenta entrar.
mas não passa.

porque hoje, aos quarenta e poucos anos, eu sigo minhas próprias regras.
criei minhas regras.
baseado em frustração, tentativa, erro, erro de novo, e finalmente…
acerto.

meus cinco princípios.
minha doutrina do caos contido.


1. nada de pilhas. e se precisa de duas mãos pra acessar, tá sabotando sua própria dignidade.

a primeira coisa que aprendi quando montei o estúdio foi que pilhas são traiçoeiras.
bonitinhas por fora, desastrosas por dentro.
tipo colega de trampo falso.

no meu quarto, eu empilhava tudo, apostila em cima de sketchbook, livro de arte em cima de caixa de fita cassete, camiseta em cima de revista em quadrinho.
funcionava?
funcionava até você tentar puxar qualquer coisa de baixo e descobrir que tinha criado a versão doméstica do colapso estrutural.

hoje no estúdio, não empilho nada que não seja idêntico.
se não for exatamente igual, não merece estar junto.
organização é segregação funcional, com orgulho.

e mais…
tudo tem que sair com uma mão só.
porque a outra tá ocupada, seja segurando o mouse, o café, ou só a vontade de desistir de algum projeto.


2. kits. cada um com sua função. cada item com seu pelotão. e a gaveta do caos sob vigilância armada.

quando era jovem, tudo ia parar na gaveta da escrivaninha.
tudo.
desde moeda antiga até fone de ouvido estragado.
eu chamava de “meu sistema”.
hoje eu chamo de “desordem institucionalizada com verniz de negação.”

no estúdio, eu não tenho mais desculpas.
então criei kits.
kit de som.
kit de elétrica.
kit de gravação.
kit do “se tudo der errado e precisar improvisar com fita e um clips”.

cada um vive numa caixa identificada.
cada item volta pro seu lugar.
não há perdão para a migração.
tirou, usou, devolve.

e sim, ainda tenho minha gaveta do caos.
porque eu sou humano.
mas ela é pequena.
frequentemente vasculhada.
e nunca, NUNCA, recebe coisa importante.


3. talismãs organizacionais, os santos da trincheira. se um some, o dia para.

ninguém sobrevive sem amuleto.
os meus são ferramentas.
simples. discretas. letais contra o caos…

  • post-it – ultraaderente, inquestionável.
  • clipe de fichário – gruda o mundo. já salvou contratos e desespero.
  • caneta preta com ponta 0.5 – precisa, limpa, direta.
  • gancho de metal pendurado na parede – guarda o fone, o cabo, o passado.

esses não vão pra gaveta.
ficam ao meu alcance.
no altar.
linha de frente.
quando um desaparece, eu não continuo.
eu paro o mundo e procuro.
porque perder um desses é abrir uma brecha na muralha.


4. prateleira não é estética… é estratégia. e se não construiu a sua, tá ajoelhando pro caos.

lembro da primeira vez que fiz uma.
não comprei pronta.
fiz.
martei, errei, medi torto, furei mal, mas fiz.
e quando coloquei a primeira caixa em cima, senti algo parecido com a sensação de finalmente ter uma cama decente depois de anos no colchão torto.

hoje cada prateleira no estúdio é território conquistado.
cada uma carrega uma função.
e o que não tem prateleira, fica no chão do inferno.

você quer organizar sua vida?
construa uma prateleira.
vai errar?
sim.
mas errar é o preço da soberania. e se não quiser construir, compre. mas tenha prateleiras.


5. personalização não é charme. é sobrevivência disfarçada de gênio torto.

nada aqui é de loja chique.
nada foi feito pra mim.
então hackeio tudo.
adaptei uma caixa em porta-fita.
usei embalagem pra segurar cabos.
reaproveitei um varal pra pendurar ferramentas.

personalizar é cuspir na cara do “pronto pra usar”.
é dizer “não me serve, então eu ajusto.”
e cada objeto que adaptei me lembra…
o estúdio é meu.
o sistema é meu.
a técnica é minha.


hoje vivo em trincheira funcional.
meu estúdio funciona.

e quando a bagunça tenta voltar,
como um velho conhecido batendo à porta com cara de “só vim visitar”,
eu olho pro meu gancho, minha prateleira, meu post-it
e penso:

“a guerra não acabou.
mas aqui, pelo menos aqui,
sou eu que mando.”

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2025

grupos no whatsapp

grupo de whatsapp virou o purgatório do mundo moderno.

me marcaram no grupo de whatsapp. de novo. às 7h43 da manhã. uma notificação dizendo “@vc viu isso?” entre 218 mensagens não lidas, 14 figurinhas de bom dia com café, flores e cachorrinhos psicodélicos, dois áudios de 6 minutos com chiado e um pdf que ninguém vai abrir. meu instinto natural foi o mesmo de sempre… ignorar, silenciar, considerar seriamente mudar de nome e fugir pro mato.

porque grupo de whatsapp, meu amigo e minha amiga, é a definição moderna de tortura leve porém constante. é aquele ruído branco da insanidade digital. é um lugar onde a produtividade vai pra morrer e a sanidade se contorce no chão implorando por um pouco de silêncio. ali, todo mundo fala, ninguém escuta, e no fim ainda esperam que você responda como se tivesse contratado o serviço de telepatia full time.

e não me entenda mal l, eu já tentei. já fui o cara que lia tudo. que respondia educadamente. que dava risada das figurinhas e dizia “vishhh que tenso kkkkk”. mas um dia, entre um gif do pica-pau e um aviso “gente, vamos marcar um encontro!!!”, algo em mim quebrou. foi como acordar num culto onde todo mundo perdeu o controle, mas ninguém percebeu. e agora seguem ali, falando sozinhos, marcando reunião, compartilhando fake news e vídeos de bebê com voz de adulto.

me marcar no grupo esperando resposta é tão eficaz quanto gritar no meio de um deserto. ou melhor, é gritar dentro de um show do skank em 2002. boa sorte tentando ser ouvido no meio da avalanche de áudio com ruído de ventilador e gente digitando “gnt vcs viram isso aq?” como se o resto do planeta parasse pra assistir esse show de horrores.

então, sim, se for importante, me chama no privado. me manda mensagem direta, liga, manda sinal de fumaça, batuca na porta, desenha na areia com sangue, qualquer coisa. só não me marque no meio de um pandemônio digital e espere que eu vá, por livre e espontânea insanidade, escavar as profundezas daquela cratera de mensagens pra descobrir que, no fim, tudo se resumia a um “pessoal, alguém viu onde tá a extensão da impressora?”.

grupo de whatsapp, hoje em dia, é a mais nova forma de prisão social. você não pode sair, porque “nossa, que deselegante, saiu do grupo!” mas também não consegue ficar sem lentamente perder a fé na humanidade. é o equivalente digital a ser convidado pra uma reunião que podia ser um e-mail, mas com trilha sonora de áudios aleatórios e a constante ameaça de receber um “vc sumiu hein” de alguém que você mal lembra o nome.

então não, eu não vou ver. eu não vou ouvir. e se depender de mim, eu nem tô mais lá. e se um dia você me vir online, ativo, lendo tudo e rindo das piadas do grupo… pode saber… fui substituído por uma IA, um robô, ou pior… virei coach.

e honestamente? nesse caso, pode me deletar mesmo.

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2025

os livros que mudaram minha vida

não leio pra me distrair. nunca li pra me entreter, nem pra escapar. nunca abri um livro querendo me sentir “melhor” ou “mais leve”. não sou desses. nunca fui. se quero alívio, eu durmo. se quero conforto, eu como. se quero dopamina fácil, tem coisa mais barata e mais rápida do que virar a página.

eu leio pra me desconstruir. pra me despir. pra rasgar a porra da embalagem da realidade e ver o que sobra quando tudo que é aceitável, educado e funcional se dissolve. os livros que me moldaram são aqueles que não ofereceram nada, e mesmo assim me deram tudo. não me trouxeram fórmulas, não prometeram evolução, não acenaram com promessas de sucesso, abundância, equilíbrio ou qualquer outro conceito de almofadinha com medo do fracasso.

os livros que realmente ficaram foram os que me jogaram na parede, sem aviso prévio. os que desorganizaram minha visão de mundo, sem me oferecer uma substituição confortável. livros que me disseram… “tá vendo essa sua verdade aí? então, ela é uma piada. e nem é boa.”
e foi exatamente aí que começaram a me moldar.

esses livros, eles não queriam que eu aprendesse nada. não queriam me ver vencendo, sorrindo, compartilhando frases de impacto com fundo de pôr do sol. eles queriam me mostrar a lama. queriam que eu sentisse o cheiro do mofo do mundo real, que eu parasse de buscar sentido e começasse a olhar o caos com olhos secos.

e por isso nunca li autoajuda. nunca precisei. nunca tive esse impulso masoquista de querer ser “melhor” com ajuda de frases de efeito e títulos que parecem comerciais de suplemento. nunca caí na armadilha do “desperte seu poder interior” ou “os 12 passos para uma vida plena enquanto tudo ao seu redor pega fogo”.
eu me preservei.
não li por desconfiança, por nojo e por saber que, se a resposta pra vida coubesse em um subtítulo, ela não valeria nada.

já os livros que li me deram aquilo que ninguém tem coragem de oferecer… consciência bruta.
sem garantias.
sem promessas.
só a lucidez como herança.

e agora eu te conto quais foram.
mas já te aviso… se você tá procurando por heróis, milagres ou finais felizes, para por aqui.
isso é sobre naufrágio.
sobre aceitar que a vida tem mais perguntas do que respostas.
e que, às vezes, a única saída digna é olhar o abismo, e rir.

então, vamos nessa. página por página, ferida por ferida.
os livros que me moldaram.
porque me quebraram.


1. moby-dick — herman melville

quando comecei moby-dick, confesso, quis largar. frase longa, palavra difícil, digressão em cima de digressão. mas algo ali latejava, uma raiva ancestral, uma febre. e aí eu entendi… melville não queria te contar uma história, queria te infectar.

não é sobre uma baleia. nunca foi. é sobre um homem que perde tudo e, mesmo assim, decide destruir mais um pouco. é sobre a arrogância de achar que você consegue dominar o que não entende. ahab é você quando insiste que precisa vencer alguma coisa, mesmo sem saber o quê.

esse livro me quebrou. me fez respeitar a beleza do colapso. e, mais do que isso, me fez entender que talvez, no fim, o erro seja a única coisa verdadeiramente humana.

2. the catcher in the rye — j.d. salinger

li catcher depois de um daqueles dias em que tudo dá errado. você conhece… celular quebra, chefe é um idiota, projeto dá errado, conta negativa no banco.

e então holden caulfield apareceu. aquele bastardo com seu boné vermelho e seu olhar de quem odeia tudo, mas no fundo só queria um abraço decente.

não é um livro adolescente. é um livro sobre quando o mundo inteiro parece uma convenção de gente falsa e você é o único que percebeu. holden não quer ser legal, não quer ser sábio. ele só quer sair andando. e às vezes, isso é o que mais te salva.

salinger não escreveu um herói. escreveu um espelho. e eu me vi ali. feio, cansado, mas ainda de pé.

3. walden — henry david thoreau

esse livro é o equivalente literário de mandar tudo à merda e ir morar num lugar onde o wi-fi não pega.
e thoreau não é um guru natureba paz-e-amor. ele é um misantropo elegante que te diz, sem sorrir, que você está desperdiçando sua vida com merdas irrelevantes.

li walden num momento em que tudo parecia correr depressa demais… carreira, rede social, obrigações. e thoreau me disse… para.
e eu parei.

ele te mostra que uma xícara de café feita em silêncio vale mais do que qualquer promoção.
ele te lembra que o tempo é a moeda mais cara  e você tá gastando tudo em porcaria.

esse livro não pede que você largue tudo.
só te pergunta, você tá mesmo vivo ou só apertando botão?

4. fear and loathing in las vegas — hunter s. thompson

esse livro entra na sua cabeça como um coquetel molotov aceso e começa a quebrar os móveis.
li de uma vez, numa madrugada e rindo. muito. porque hunter escreve como se fosse explodir a qualquer momento.

não é sobre drogas. é sobre delírio. sobre olhar pra um país que se vende como terra dos sonhos e ver uma feira de horrores neon, cheia de idiotas com sorriso falso.
é sobre cair no meio do deserto e perceber que você nunca teve mapa.

não tem moral, não tem final feliz.
tem só a beleza suja do colapso com estilo.
e, às vezes, é só isso que importa.

5. the electric kool-aid acid test — tom wolfe

esse livro é uma carona num ônibus pintado por malucos visionários que achavam que dava pra escapar da realidade com arte e ácido.

e olha… por algumas páginas, você acredita que sim.
tom wolfe te arrasta pela década de 60 com uma escrita afiada e corajosa. ele não narra, ele injeta. você sente o cheiro do couro quente, a poeira da estrada, o som de guitarras mal afinadas vindo do fundo da alma.

não é um livro que você “lê”.
é um livro que você sobrevive.
e quando termina, você lamenta, porque o mundo de hoje é chato demais pra uma viagem dessas.

6. twilight / dark ages / why america failed — morris berman

li os três com a mesma sensação de assistir um prédio desabar em câmera lenta.
berman escreve como quem não tem mais tempo pra delicadeza. ele não tá tentando salvar o mundo, ele tá te explicando, com calma, por que ele já era.

não é pessimismo. é lucidez.
ele te mostra, com dados e sarcasmo, que educação virou piada, cultura é fast food, política é circo. e que ninguém quer saber disso, só quer o próximo entretenimento.

esses livros me libertaram da esperança inútil. e no lugar dela colocaram algo muito mais útil… consciência.

7. the fourth turning — strauss & howe

lembra aquele sentimento de que a história tá se repetindo?
esse livro te mostra que sim, mas com data, lógica e estrutura.

os caras explicam que tudo acontece em ciclos… tempos bons criam homens fracos. homens fracos criam tempos ruins. tempos ruins criam homens fortes. e assim vai.

li com raiva e gratidão.
porque depois dele, parei de esperar coerência do mundo.
e comecei a prestar atenção nas marés.
no tempo certo, tudo desmorona.
e tudo recomeça.
mas nunca como antes.

8. dark money — jane mayer

esse livro é a aula que você não teve.
o reality check definitivo de que democracia é só uma ideia bonita colada com durex em cima de interesses sujos.

mayer escancara os bastidores de um jogo manipulado por gente rica, velha, branca, e entediada.
ela mostra como a política virou brinquedo na mão de dinastias podres de grana.
e você, no meio disso tudo, é só o figurante que acha que tá decidindo alguma coisa.

é leitura obrigatória pra todo mundo que já pensou em dizer “meu voto muda o mundo”.
spoiler… não muda.
mas saber disso já é um bom começo.

9. the culture of fear — barry glassner

esse livro me acertou como um tapa de luva suja.
glassner não tá aqui pra te alarmar, ele tá aqui pra te tirar do transe.
ele não grita “o mundo é perigoso!”
ele sussurra “o mundo é vendido como perigoso. e você compra essa merda com gosto.”

sente só, você tem mais medo de ser sequestrado por um serial killer do que de passar 40 anos engolindo ansiedade num escritório open space onde ninguém lembra seu nome.
tem medo de terrorismo, mas não da sua conta bancária.

glassner esfrega isso na sua cara com frieza cirúrgica.
ele mostra que o medo é um produto. e que a mídia é o dealer.
ler esse livro foi como limpar os olhos com álcool.
doeu. mas agora eu vejo melhor.

10. the outlaw bible of american essays / poetry / literature — ed. alan kaufman

se esses livros tivessem cheiro, seria de cigarro barato, uísque derramado e madrugada mal dormida.
é aqui que a literatura americana guardou os bastardos. os malditos. os não-convidados.
é aqui que você encontra a escrita que fede a verdade.

li a primeira página e entendi…
aqui não tem pose. não tem revisão gramatical.
tem gente escrevendo com os nervos expostos.
gente que já perdeu tudo, e por isso, escreve como quem não deve nada a ninguém.

a cada texto, eu sentia como se tivesse entrando num bar onde todo mundo já viveu mais do que eu.
e todo mundo escreve melhor também.
foi o primeiro livro em muito tempo que me deu vontade de escrever de novo.
sem frescura. sem workshop. sem permissão. e foi esse livro que fez esse blog nascer!!!

11. edgewise: a picture of cookie mueller — chloé griffin

cookie mueller era um furacão.
atriz, escritora, figura de cena punk, bicho raro, mulher livre.
esse livro reconstrói a vida dela através de quem conviveu com ela, e o resultado é um retrato que nunca se encaixa.

ler edgewise é como tentar capturar fumaça.
cookie não cabe em caixinha, nem em legenda.
ela era suja, viva, intensa, engraçada, imprudente.
e profundamente real.

quando terminei, me senti menor.
porque percebi que eu ainda vivo pedindo licença.
e ela viveu como se o mundo fosse dela por direito e porra, era mesmo.

12. shop class as soulcraft — matthew b. crawford

esse livro é o murro necessário na cara de todo mundo que acha que sucesso se mede em reuniões e slides de powerpoint.
crawford largou o terno, virou mecânico, e escreveu um tratado brilhante sobre como o trabalho manual pode salvar sua alma.

e ele não tá romantizando o esforço físico, ele tá esfregando na nossa cara que pensar com a mão, com o corpo, com a graxa, talvez seja mais digno que toda a cultura de produtividade e abstração corporativa.

eu li e senti raiva de todas as vezes que achei que trabalhar sentado numa cadeira com ar-condicionado era um sinal de vitória.
crawford te lembra que criar, consertar, fazer, é um ato de presença.
e que talvez você esteja ansioso porque nunca mais encostou em algo real.

e esses são os livros.
os que ficaram.
os que moldaram essa casca de cinismo funcional que, por algum milagre, ainda tem sangue correndo por dentro.

eu não leio pra escapar.
leio pra lembrar que tô acordado.
e esses livros me deram isso.

eles não me salvaram.
mas me deram um espelho sujo, pesado, honesto e disseram… “olha bem. é com isso que você vai ter que lidar. boa sorte.”

e às vezes… é tudo que a gente precisa.

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2025

meus próximos anos

tem dia que eu olho em volta e penso… quem projetou esse mundo?
quem achou uma boa ideia fazer um banco que não abra a porra da gaveta, uma mochila que massacra a coluna, um teclado que foi claramente desenhado por alguém que odeia dedos humanos?
o copo escorrega. a estante não encaixa. o sofá é bonito até você sentar.
e o botão do elevador, aquele maldito botão, precisa ser pressionado com a força de um deus grego pra funcionar.

isso é design.
não só o que é bonito.
mas o que funciona.
ou melhor, o que deixa de funcionar e vira parte da sua frustração diária até você nem perceber mais o quanto odeia as coisas ao seu redor.

e é justamente por viver nesse teatro de decisões medíocres, disfarçadas de “soluções”, que eu escolhi o caminho mais óbvio, e mais insano…
usar design pra transformar essa bagunça.
móvel, mochila, estante, relógio, boneco de plástico, tela de app, luz do banheiro, cadeira de reunião, tudo.
se existe, se alguém encosta, segura, olha ou tenta usar, então tem design ali.
e se tem design, tem potencial pra dar errado, e quase sempre já deu.

o que eu quero fazer nos próximos anos é isso.
pegar esse mundo cansado, saturado de soluções meia-boca,
e tentar, com inteligência, ironia e um time de pessoas incríveis, redesenhar o que ninguém mais tá com paciência de consertar.

sem prometer revolução.
mas com uma urgência quase pessoal de parar de aceitar que “a vida é assim”.
porque não, não é.
a vida só é assim porque alguém fez escolhas ruins. e ninguém voltou pra corrigir.

e é aí que entra o design.
não como enfeite.
mas como ferramenta bruta de transformação cotidiana.

e é exatamente isso que vamos fazer na rg design.
um lugar onde não se projeta só “coisas”.
se projeta vivência.
se questiona cadeira, mesa, embalagem, interface, cronômetro, estrutura.
se pergunta… por que isso existe desse jeito?
e mais importante… por que ainda não melhoramos?

e não tô falando de fazer o novo pelo novo.
tô falando de fazer o certo.
o que funciona.
o que respeita quem usa.
o que não precisa de manual, nem desculpa.

e com origem…

porque o que tem origem não grita, não performa, não pede validação. ele simplesmente existe, porque precisa existir. nasce da necessidade crua, da função nua, do material que impõe limite e dá forma. o que tem origem não quer impressionar, quer resolver. não nasceu pra palco, nasceu pra uso. e é justamente por isso que dura, que impacta, que muda. o resto? o resto é só barulho com prazo de validade e ego demais pra admitir que nunca teve motivo pra estar ali.

e no fundo, o que me move é isso e é tão simples que pode parecer banal…
eu tô cansado de viver num mundo cheio de “tá bom assim”.
tá nada.

então sim, vou dedicar os próximos anos da minha vida a isso.
a desentortar o cotidiano com design.
a deixar um pouco menos torto o caminho entre você e o que você quer fazer.
a devolver pras pessoas o prazer silencioso de usar algo e simplesmente pensar…
“até que enfim.”

sem glitter.
sem glória.
só design.
da mochila ao botão.
da mesa ao momento.
da RG pro mundo.

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2025

a coisa que mais odeio na vida

poucas coisas me fazem questionar o valor da civilização moderna tanto quanto aquele momento sagrado, aquele ritual de merda, quando o iluminado da frente resolve reclinar a porra da poltrona. e não tô falando daquele leve encostinho simpático, aquele gesto civilizado de “ei, vou só ajustar aqui pra tentar fingir que esse avião não é uma lata de sardinha voadora”. não. eu tô falando do sujeito que puxa a alavanca como quem tá abrindo um portal pro nirvana. ele joga o corpo pra trás com a leveza de um elefante morto, me jogando metade da tela do meu filme no peito e a outra metade no vácuo existencial.

e é sempre assim, eu tô ali, miseravelmente tentando comer aquele risoto genérico com gosto de papelão e de repente, páá. o encosto invade meu espaço vital como se tivesse recebido um convite pessoal. minha bandeja? virou um campo de guerra. meu joelho? objeto de tortura medieval. e o cretino lá, mergulhado no paraíso dele, como se estivesse num spa flutuante, bufando de prazer como se tivesse descoberto a cura pra depressão nas costas de um assento da gol.

é quase poético, se poesia fosse escrita com ranço, irritação e um toque de claustrofobia.

mas o que me mata de verdade é a confiança, o descaramento sereno. ele sabe o que tá fazendo. eles todos sabem. e fazem mesmo assim. por quê? porque o avião é um microcosmo perfeito da humanidade, todo mundo fodido, mas sempre tem um filho da puta que quer ficar um pouquinho mais confortável que o resto.

então, se você é desses, o reclinador convicto, o messias do conforto próprio, o conquistador de espaços alheios, saiba que você é o motivo pelo qual eu acredito que, às vezes, a humanidade não merece voar.

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2025

wes anderson

eu percebi que estava fodido quando comecei a sentir inveja de personagens do wes anderson.
não da vida deles.
mas da capacidade que eles têm de fracassar com tanta… dignidade estética.

sério.
os caras vivem colapsos internos violentíssimos, e você mal percebe.
porque enquanto estão à beira da dissolução emocional completa, eles estão usando um casaco de lã com corte impecável, lendo um livro com um título tipo “essays on isolation (vol. ii)”, com a trilha dos zombies tocando ao fundo.
e você assiste e pensa…
“caralho, que vibe boa.”
vibe boa o cacete. o cara tá morrendo por dentro.

eu sou o tipo de pessoa que se reconhece num personagem que olha pela janela por tempo demais.
tipo o garoto de asteroid city, aquele com cara de que passou a adolescência inteira colecionando traumas em potes etiquetados.
o moleque fica o filme todo olhando pro céu como se estivesse esperando uma nave alienígena ou, sei lá, algum sinal de que a vida não é só um looping interminável de conversas estranhas e adultos que mentem sorrindo.

e quando a scarlett johansson vira pra ele e fala “you can look through me if you want, but you’ll have to focus”, eu me senti atacado.
porque é isso que o wes faz comigo.
ele me faz olhar pra personagens que, claramente, não estão bem mas que construíram castelos emocionais tão bonitos que ninguém ousa derrubar.
nem eles mesmos.

em os excêntricos tenenbaums, por exemplo, tem uma frase do eli cash que é perfeita…
“i always wanted to be a tenenbaum.”
eu entendo.
quem não quer ser parte de uma família emocionalmente disfuncional, mas com uma biblioteca impecável, figurino coordenado e depressões silenciosas com pedigree?

o richie cortando os pulsos com trilha sonora de elliott smith tocando ao fundo não é só uma cena, é uma instalação artística sobre como gente branca rica lida com o fim do mundo pessoal.
com silêncio, linho e drama ensaiado.
e mesmo assim, eu vi aquilo e pensei… “gostaria de estar nesse banheiro.”

o max fischer, de rushmore, é basicamente eu aos 16 anos, só que com mais iniciativa e blazer.
ele tem a audácia de dizer…
“i wrote a hit play! i’m in love with you!”
pra uma mulher claramente em luto, emocionalmente instável, e ainda por cima educada demais pra dizer “me deixa em paz, menino.”
e é essa energia, esse teatro interno constante, que define o universo do wes.
ninguém ali fala o que sente.
eles performam o sentimento.
com voz baixa, mãos nos bolsos e alguma peça de roupa herdada de um parente morto.

em viagem a darjeeling, os três irmãos literalmente vão até a puta que pariu pra encontrar a mãe que os abandonou.
e quando finalmente encontram, ela manda uma fala perfeita, glacial, que me destrói toda vez… “you don’t love me. you just love how i make you feel.”
puta que pariu.
quer frase mais passivo-agressiva e perfeitamente encenada que essa?
dá vontade de mandar bordar numa toalha de mesa.
e mesmo assim, eles aceitam.
sem escândalo.
sem cena.
só baixam a cabeça, ajeitam a mala da louis vuitton e pegam o trem de volta pra neurose cotidiana.

em a vida marinha com steve zissou, eu me vejo no bill murray.
o cara passou do prazo de validade, ninguém mais respeita, o filho aparece do nada e morre antes do terceiro ato.
e ele passa o filme inteiro de boina e olhar perdido, tentando parecer capitão de um navio imaginário que só ele ainda acredita que existe.
e aí, no meio de uma missão fracassada, ele solta:
“i wonder if it remembers me.”
falando sobre um tubarão.
um puta tubarão psicodélico que matou o melhor amigo dele.
e mesmo assim, a dúvida dele é essa.
se o bicho lembra.
esse é o nível de abandono afetivo que só um personagem do wes consegue alcançar.

e o sr. raposo?
uma raposa com terno de veludo que rouba galinhas porque não consegue aceitar que a vida se tornou estável demais.
tem uma cena em que ele pergunta…
“who am i? why a fox? why not a horse or a beetle or a bald eagle?”
e eu ali, comendo pipoca, me identifiquei com uma raposa animada com crise de identidade metafísica.
ele quer ser selvagem.
mas mora num buraco com iluminação aconchegante e uma esposa que claramente desistiu de esperar maturidade.

em ilha dos cachorros, os cães abandonados falam com mais dignidade do que qualquer humano na vida real.
o chief, o vira-lata que não quer se apegar a ninguém, diz…
“i bite.”
e pronto.
você entende todo o histórico de abandono e autoproteção daquele personagem.
uma aula de roteiro.
uma aula de como transformar trauma em frase de efeito.

e aí tem os detalhes.
as frases miúdas.
as coisas que passam voando, mas grudam em mim que nem vírus de melancolia.
tipo quando, em a crônica francesa, o benicio del toro nu, coberto de tinta e ódio diz:
“i’m not a great artist. i just have a great subject.”
e você sabe que ele tá falando da própria dor.
da própria miséria.
do próprio inferno interno embalado em tinta acrílica e frases curtas.

ou quando o zero moustafa, em o grande hotel budapeste, lembra do gustave h.
com aquele olhar de saudade que não chora.
e diz…
“he was one of the last.”
a última geração de gente que fingia bem.
que sabia fazer da decadência um espetáculo digno.
que sabia morrer com colônia, poesia e pontualidade.

eu assisto todos esses filmes como quem visita um museu da minha própria ruína.
reconheço peças.
me vejo nas vitrines.
e saio dali meio irritado, meio emocionado, sempre com vontade de fumar um cigarro que eu nem fumo só pra completar a estética da falência.

o wes anderson faz filmes como quem arruma o quarto antes de se enforcar.
tudo limpo.
tudo alinhado.
com uma carta de despedida escrita à máquina.
e você, espectador, entra nesse quarto, vê o corpo pendurado…
e pensa…
“meu deus, que belo carpete.”

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2025

aviso: eu sei que esse texto não serve pra todo mundo

eu já desisti, e nem foi com sofrimento… foi com aquele tipo de alívio sujo e silencioso que você sente quando percebe que o teatro acabou, que o palco tá pegando fogo e, sinceramente, foda-se… ninguém vai sair vivo mesmo. só sobra a plateia, olhando hipnotizada enquanto o circo corporativo arde. eu tô lá, no meio, dando risada, não porque sou mais forte, mais sábio ou mais equilibrado, mas porque não tenho mais estômago pra fingir que me importo.

assumir a loucura hoje não é um ato de coragem. coragem era em 1998, quando você podia largar tudo, comprar uma kombi e virar “artista”. hoje é só falta de vergonha na cara, e isso, meu amigo, minha amiga, é a única coisa que ainda vale alguma coisa nesse mundo saturado de gente fingindo que tá “construindo um legado”. que legado, porra? tu mal consegue construir um argumento decente numa reunião sem recorrer a um “vamos pensar fora da caixa”.

eu já parei de tentar parecer são quando percebi que o mundo virou esse lugar onde quem aparenta sanidade, na real, só tá muito bem treinado no fingimento. e olha que treino, hein? gente que acorda cedo pra correr, não porque gosta, mas porque leu que ceo faz isso, e depois posta…“5h, foco total”. foco total, uma ova. tá todo mundo ali, exausto, querendo que alguém simplesmente puxe a tomada e desligue essa máquina infernal que virou a rotina.

e você ainda me pergunta “como assumir minha loucura?”, como se não fosse óbvio que essa porra já te consumiu faz tempo. quer prova? abre teu histórico de pesquisa. “como ser mais produtivo”. “como evitar burnout”. “como parecer mais confiante”. parecer. nunca ser. sempre parecer. é isso que vocês fazem, gastam a pouca energia vital que resta tentando parecer algo que não são, pra pessoas que não se importam, num sistema que vai cuspir seus restos na primeira oportunidade.

assumir a loucura é só o primeiro passo de quem já entendeu que não vai ser o protagonista daquela narrativa heroica de superação, onde você, após anos de esforço silencioso, finalmente é reconhecido e promovido. não vai rolar, campeão. o que vai acontecer é que, no dia do seu aniversário, o rh vai te mandar um e-mail padrão e, se der sorte, talvez role um bolo de supermercado na copa. parabéns, mais um ano sendo sugado lentamente até virar só mais um crachá desligado.

e aí, nesse meio-tempo, você segue esse teatrinho, postando no linkedin sobre “propósito” e “colaboração”, marcando café virtual com aquele colega que você mal suporta, rindo de piadas sem graça em reunião, falando de “entregas” como se estivesse liderando a nasa. entregas, porra… tu tá fazendo planilha, não mandando foguete pra marte.

eu já larguei essa necessidade de parecer competente. já respondo e-mails com “beleza!” e um joinha, já entro nas reuniões sabendo que nada ali vai mudar o rumo da humanidade, já entendi que se o sistema cair e os arquivos sumirem, ninguém vai morrer, só vai ter menos relatórios que ninguém leria de qualquer forma.

assumir a loucura, no fundo, é só aceitar que esse show é grotesco, e que você pode rir dele, ou ser engolido por ele. pode ser aquele cara que diz “não aguento mais”, ou pode ser aquele que, mesmo odiando, ainda escreve textão motivacional e se inscreve em palestra sobre “soft skills”. a escolha é tua: ser o louco rindo ou o chato que aplaude enquanto se enforca com o próprio crachá.

eu escolhi rir. alto, debochado, insuportável. e quer saber? não me tornei um ser iluminado, não atingi nirvana, não virei referência em nada… mas, pelo menos, me livrei da ilusão de que precisava.

a loucura, essa sim, é a única coisa sincera que ainda te resta. assume logo, caralho. para de tentar ser “menos chato”. quer deixar de ser chato? então começa recusando a próxima reunião que claramente não precisa acontecer, para de comentar “arrasou!” no post de promoção de alguém que você secretamente odeia, e pare pelo amor de tudo que restou de honesto de usar “sinergia” em frase séria.

ser louco hoje não é ser rebelde, é ser lúcido. e lúcido, nesse contexto, é ser sarcástico, seco, afiado, um canalha elegante que vê esse espetáculo patético desmoronando e escolhe, conscientemente, não ajudar a segurar a estrutura.

assume tua loucura como quem bota o paletó de um terno que não serve mais: rasgado, apertado, desconfortável… mas é o que tem. e, mais importante: não pede desculpa. nunca pede desculpa.

porque, no final, quem ainda pede desculpa por ser louco… é só mais um chato com medo de admitir que o maior erro da vida foi ter tentado ser “normal”.

e você? vai pedir desculpa ou vai rir comigo enquanto o mundo pega fogo?

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2025

eu mesmo

acredite ou não e, sinceramente, espero que não acredite, porque acreditar seria admitir que perdeu tempo demais sendo o que nunca precisou ser, sou generosamente recompensado por ser exatamente quem sou. não esse “eu” domesticado, polido, convenientemente ajustado pra caber no feed, mas esse aqui que é cru, direto, indiferente ao esforço ridículo de parecer interessante.

não é sobre coragem. nunca foi. coragem exige intenção, e eu só sigo. sigo sem pedir desculpas, sem suavizar, sem essa preocupação doentia com a digestibilidade das palavras, como vocês gostam de chamar.

eu não dou a mínima. e não porque seja um projeto de vida, mas porque não sobra energia quando você entende o quão grotesca é essa encenação cotidiana que vocês transformaram em rotina. o aperto de mão calculado, a opinião moderada, a indignação programada, a alegria de catálogo.

é fascinante, admito. ver todo mundo correndo, se ajustando, competindo pra ser a versão mais estéril possível de si mesmo. lapidados até o tédio. funcionais até a irrelevância. todos obedientes, todos previsíveis, todos satisfeitos em serem apenas… parte.

eu sigo fora disso. não porque sou rebelde, rebeldia é só outro tipo de performance. sigo fora porque não me interessa participar de um jogo onde a vitória significa apenas ser o mais eficiente em apagar a si mesmo.

e talvez seja isso que incomoda. não que eu não jogue, mas que eu não queira nem assistir.

então, sim, acredite ou não, sigo aqui, intacto, não porque sou mais forte, mas porque tive a decência de não me submeter.

mas, e você? até quando vai seguir aí, ajustando, editando, limando, se curvando, se moldando pra ser aceito por quem mal nota que você está aí?

até quando vai insistir que vale a pena?

até quando vai fingir que não percebe que não é?

não precisa responder. nem agora, nem nunca.

mas vai pensar nisso. e, quando pensar, só espero que tenha estômago suficiente pra lidar com o que vai descobrir.

ou, quem sabe… pra, finalmente, parar.

se tiver coragem.

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2025

boina

agora eu uso boina. e, honestamente, nem sei mais onde começa a piada e onde termina a necessidade. virou esse hábito tão mecânico quanto respirar, só que infinitamente mais provocativo. porque, convenhamos, quem usa boina hoje, fora dos figurinos de teatro de escola ou das fotos de influencers tentando parecer “conceituais”?

ninguém. justamente por isso, eu uso. porque gosto da sensação de estar andando na contramão do desfile deprimente das roupas esportivas hiperfuncionais, das camisas de linho bege, dos tênis de solado grosso que parecem mais indicados pra uma missão na antártida do que pra atravessar a rua até a padaria. eu uso boina porque, enquanto todos estão preocupados em parecer “confortáveis”, “versáteis”, “minimalistas”, eu prefiro parecer deslocado, excessivo, inadequado.

boina não é só um acessório, é um comentário. silencioso, mas gritante. como aquele olhar que você lança no jantar de família quando alguém solta uma frase idiota e você decide que o silêncio constrangedor é mais eficaz do que qualquer resposta.

e claro, não dá pra usar boina sem carregar junto a herança maldita de quem a usou antes. não como homenagem, não como continuação, mas como quem passa por uma cidade fantasma e decide assobiar só pra ouvir o próprio eco.

porque, veja bem, a boina já foi muitas coisas… em brecht, um gesto cortante, um ponto final ambulante, uma borda rígida pra quem se recusava a ser suavizado. em beckett, um adorno mínimo pra quem já tinha desistido de qualquer adorno. em picasso, uma extensão natural do desdém por qualquer tipo de limite. e no che… bem, no che virou caricatura, virou símbolo, virou souvenir. o maior triunfo e o maior fracasso da boina condensados num único retrato pixelado, replicado até a náusea.

eu não uso boina pra ser símbolo de nada. uso boina como quem acende um cigarro em ambiente fechado sabendo que incomoda, sabendo que ninguém mais faz, e exatamente por isso, fazendo.

a boina é essa coisa ultrapassada, desconfortável, muitas vezes inútil, que não protege do frio nem da chuva, que esquenta demais no verão e voa com o primeiro vento mais atrevido. mas tá ali, firme, como um erro assumido, como um vício sem justificativa, como um lembrete silencioso de que algumas escolhas a gente não faz, simplesmente aceita.

e tem dias que ela pesa, que incomoda, que parece um fardo. e tem dias que ela me salva, de olhares, de julgamentos, de conversas indesejadas. porque a boina cria essa bolha, essa cápsula de diferença… as pessoas olham, não sabem se perguntam, não sabem se elogiam ou se debocham e nesse impasse, me deixam passar. perfeito.

uso boina como quem usa ironia, não pra esconder, mas pra marcar território. pra estabelecer distância, pra lembrar que eu continuo me recusando a vestir o uniforme do consenso, do bom gosto consensual, da praticidade sem alma.

e, claro, às vezes, enquanto ajeito a boina, percebo que continuo batendo a cabeça nas coisas, nas pessoas, nas escolhas erradas, nas conversas que não devia ter entrado. mas a boina já não está mais ali pra proteger. está pra outra coisa, pra lembrar que, mesmo tropeçando, mesmo esbarrando, mesmo errando, continuo indo.

a boina não é símbolo, não é armadura, não é disfarce, é a marca silenciosa de quem se recusa a pedir licença, de quem atravessa, provoca e, se necessário, incomoda.

então agora eu uso boina. não porque precise. não porque queira parecer. mas porque gosto dessa ideia de ser um anacronismo ambulante, um erro de costura na malha lisa e previsível da estética contemporânea.

uso boina porque o mundo ficou confortável demais, adaptado demais, amaciado demais. e eu, sinceramente, prefiro manter alguma borda áspera. mesmo que só seja um pedaço de pano torto na cabeça, meio ridículo, meio desnecessário… mas inteiramente meu.

e, acima de tudo, absolutamente irretratável.

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2025

eu sou um idiota

não tenho medo de parecer um idiota. nunca tive. nunca quis não parecer. eu abraço esse título como quem encontra um velho amigo num bar imundo e o puxa pra beber até esquecer o próprio nome. ser idiota, parecer idiota, assumir o idiota que sou… tudo isso é a mesma coisa. é a minha forma de existir, de atravessar os dias com uma gargalhada estridente, desafiadora, desconfortável pra quem escuta, mas libertadora pra quem solta.

não tenho medo de ser o cara que fala demais, que tropeça nas próprias palavras, que tenta explicar uma ideia e se perde no meio da frase, que confunde nomes, que esquece aniversários, que faz perguntas óbvias e não vê problema algum nisso. não tenho medo de pagar mico, de errar feio, de ser visto como alguém que não entendeu. não tenho medo de admitir que não entendi, não tenho medo de pedir ajuda, não tenho medo de levantar a mão e dizer: “pera aí, o que caralhos está acontecendo?”.

não tenho medo de parecer idiota porque sei que esse é o espaço onde as coisas realmente acontecem, no improviso, no erro, no excesso, na fala atravessada, no gesto descoordenado. não tenho medo de me jogar sem rede, de andar sem mapa, de fazer sem saber. não tenho medo de ser visto como um desastrado, um impulsivo, um sem-noção porque, honestamente, eu sou mesmo tudo isso. e qual seria a alternativa? me conter? me polir? me reduzir a um catálogo de comportamentos aceitáveis, previsíveis, palatáveis? pra quê? pra quem?

não tenho medo de parecer idiota quando me entusiasmo demais, quando acredito demais, quando aposto tudo numa ideia que talvez não vá dar em nada. não tenho medo de ser aquele que se emociona, que chora, que ri alto, que se embriaga de vida até cair de joelhos, sem nenhuma elegância, sem nenhuma dignidade e sem nenhuma vergonha.

não tenho medo de ser visto como um idiota porque não sou movido por essa necessidade patética de parecer sempre seguro, sempre no controle, sempre dono de si. eu não sou dono de porra nenhuma. não controlo nada, nunca soube o que estava fazendo, nunca fiz questão de parecer que sabia. e isso é libertador. é isso que me permite estar onde estou, fazer o que faço, viver o que vivo.

não tenho medo de parecer um idiota quando tento coisas novas, quando entro em territórios desconhecidos, quando digo sim pra convites que sei que vão me colocar em situações desconfortáveis. não tenho medo de me perder. não tenho medo de errar o caminho, de pegar o trem errado, de sentar na mesa errada. não tenho medo de acumular cicatrizes, de somar fracassos, de contar histórias onde o herói não vence, mas tropeça, capota e ainda assim levanta, rindo, com o joelho ralado e o orgulho intacto.

não tenho medo de parecer idiota porque não carrego essa necessidade cretina de ser levado a sério o tempo todo. não sou uma marca pessoal, não sou um slogan, não sou uma porra de uma “persona” de rede social. sou só eu, atravessado, cheio de falhas, cheio de impulsos, cheio de momentos em que pareço, e sou, um idiota completo. e isso não me enfraquece. isso me torna mais forte, mais real, mais humano.

não tenho medo de parecer idiota quando me contradigo, quando digo uma coisa e depois faço outra, quando mudo de ideia, quando admito que estava errado. não tenho medo de parecer incoerente, exagerado, teatral, inapropriado. não tenho medo de ser o excesso, de ser o ruído, de ser o erro. não tenho medo de não caber no molde. não tenho medo de ser lembrado como aquele que nunca soube exatamente o que estava fazendo, mas fez mesmo assim.

não tenho medo de parecer um idiota porque o idiota vive. o idiota sente. o idiota tenta. o idiota cai. o idiota levanta. o idiota continua. e eu continuo. sempre continuo.

não tenho medo de parecer idiota porque, no fim, é só isso que somos, uma coleção de tentativas falhas, de erros grotescos, de histórias mal contadas, de impulsos que deram errado. não tenho medo de ser isso. eu sou isso. e, que alívio, que grande e maravilhoso alívio ser, sim, um idiota inteiro, orgulhoso, irremediável.