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2025

eu tenho razão

todo mundo tem razão. absolutamente todo mundo. o planeta inteiro vive num delírio coletivo onde cada ser humano acredita piamente que está certo, não em algumas coisas, não em assuntos que estudou, não nas coisas que viveu… em tudo. e o mais incrível? ninguém acha isso estranho. ninguém olha ao redor e pensa: “peraí, como é que todo mundo pode estar certo ao mesmo tempo se ninguém concorda com porra nenhuma?” não. o negócio é manter a pose, estufar o peito e seguir distribuindo certezas com a generosidade de um político em época de eleição.


o mundo virou um buffet livre de opiniões malpassadas, e todo mundo se serve como se estivesse num banquete de sabedoria. e ninguém escuta. ninguém quer escutar. porque escutar implica em correr o risco mortal de ser contrariado. e isso, em pleno século da autoestima inflável, é pior que peste bubônica. a conversa virou esporte de combate. o diálogo, um ringue onde se espera a vez de atacar, não de entender.

as pessoas não ouvem, elas esperam. esperam a pausa do outro, a brecha, a fraqueza na fala alheia, o tropeço na argumentação, como hienas famintas roendo osso de opinião. ninguém tá interessado no que o outro pensa. o que importa é a própria fala, o próprio roteiro, o monólogo interior que já vem sendo ensaiado desde o segundo em que o outro abriu a boca. é como se a conversa fosse um podcast unilateral com plateia forçada.

e o que alimenta tudo isso? ego. puro, fedido, oleoso ego. essa entidade frágil que precisa, desesperadamente, estar certa. porque estar certo virou mais importante que estar vivo. mais importante que estar em paz. estar certo hoje é status. é identidade. é armadura. a razão virou escudo emocional, bengala intelectual, e brinquedo de criança mimada.

e se, por um milagre, alguém tenta dizer algo diferente, se ousa soltar uma ideia contrária, um ponto de vista estranho, um “e se…” tímido… o tribunal é montado na hora. o julgamento é sumário. e a sentença é sempre a mesma… “você não entendeu”, “você tá mal informado”, “você é burro, só que com educação passivo-agressiva”. porque reconhecer valor em uma opinião que não seja a sua exige um grau de maturidade emocional que a maioria das pessoas trocou por curtidas no instagram e frases motivacionais de coach.

a tragédia não é que todo mundo acha que tá certo. a tragédia é que ninguém suporta a ideia de estar errado. ninguém suporta o silêncio desconfortável que vem depois de um “talvez eu tenha me enganado”. ninguém quer encarar a possibilidade de que o outro lado pode ter um ponto. mesmo pequeno. mesmo torto. mesmo desconfortável.

uma humanidade inteira, cada um dentro da própria bolha de sabedoria inflável, flutuando num mar de ruído. todos surdos. todos certos. todos prontos pra próxima discussão inútil com a convicção de quem carrega as tábuas sagradas do monte sinai… escritas com fonte de meme e baseadas em um vídeo de 3 minutos que alguém mandou no zap.

e se tem um altar onde essa adoração patética pela razão atinge níveis olímpicos de ridículo, é nas redes sociais. esse grande palco onde cada idiota com conexão acha que virou editor do new york times, filósofo contemporâneo, juiz da moral global e autoridade suprema sobre absolutamente tudo. a timeline é uma avenida de gritos, uma orgia de certezas desgovernadas, onde ninguém dialoga, só se apresenta. não é rede social, é competição de quem cospe opinião mais rápido, com mais indignação e menos informação.

ali, a coisa fica ainda mais feia. você pode até ver um post com uma ideia que contraria a sua… e por um segundo, um milésimo de segundo, algo dentro de você sussurra… “interessante… talvez essa pessoa tenha um ponto”. mas aí o ego, esse tirano de voz estridente e autoestima hipertrofiada, pula da cadeira, grita “você vai deixar barato?”, e você lá vai. digitar, rebater, corrigir, ensinar. porque, claro, você não está debatendo… você está educando o planeta. fazendo caridade intelectual. salvando a humanidade de si mesma, um comentário pedante de cada vez.

e o mais trágico é que não importa a pauta. não importa. pode ser política, ciência, comportamento, filosofia, arte, vinhos orgânicos, o uso correto de vírgulas, a temperatura ideal do ar-condicionado, qualquer merda serve de combustível. o que interessa é manter viva a chama da convicção. não pela verdade, não por justiça, mas porque admitir que talvez, só talvez, você não entenda tudo… seria como arrancar a própria pele em público.

e no fundo, é isso… todo esse show de certezas é só um desespero disfarçado. uma defesa patética contra o medo ancestral de estar perdido. porque é isso que a gente é, um bando de gente perdida tentando fingir que sabe o caminho. e quem finge com mais confiança, com mais volume, com mais arrogância… vira líder de opinião. influencer. coach. ou aquele tio insuportável que ninguém consegue bloquear porque é da família.

o problema não é achar que tá certo. o problema é a doença em acreditar que estar certo te torna melhor que os outros. que dá algum tipo de poder, de valor, de status. como se razão fosse medalha e não um acidente ocasional. como se entender algo antes de alguém te desse direito a vomitar arrogância em cima de todo mundo como se fosse perfume francês.

e enquanto isso, o mundo que se foda. queimar floresta? colapso climático? desigualdade galopante? genocídio em câmera lenta? dane-se. o importante é ganhar discussão no grupo de zap da faculdade de 2009 e postar aquela frase de efeito no story com fundo preto e fonte branca.
porque no fim do dia, dane-se o planeta, a humanidade, a complexidade do mundo real, o que importa é que eu estou certo. e se eu estou certo, nada mais importa.

então, repete comigo, mundo moderno:
eu grito, logo existo.
eu argumento, logo venço.
eu nunca escuto, porque escutar é admitir que talvez eu não seja deus.
e isso, meu caro… isso é inaceitável.

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2025

quem eu sou?

se quiser me conhecer, não pergunta minha profissão, minha cidade natal, meu signo ou meu prato preferido. pergunta que filmes me moldaram. porque eu não fui criado por gente, fui moldado por imagens, falas, planos longos e cortes secos. fui criado pelo silêncio de michael corleone, pela risada nervosa do jules antes de fuzilar um idiota, pela respiração do hal 9000 pedindo pra viver, pelas lágrimas da mulher que morre sorrindo num filme do bergman. minha identidade tá nos créditos finais. meu trauma é widescreen.

o começo foi coppola. claro. ele foi deus. mas um deus rancoroso, vingativo, um artista que entendeu que o poder não corrompe, ele revela. vi o poderoso chefão cedo demais, e foi como tomar uísque puro com oito anos. me destruiu, me formou, me ensinou que a família é uma ficção alimentada a medo e silêncio. michael me ensinou a arte de matar devagar, com olhos, com pausas. quando ele diz “it’s not personal, son. it’s strictly business”, eu entendi o mundo. não tem ética, só estratégia. e o beijo que ele dá no fredo antes de mandar matar é o amor sendo esmagado pela lógica. o terceiro filme, que todo mundo ridiculariza, é o testamento. michael velho, com a filha morta nos braços, o rosto desfigurado de dor, sem gritar, sem lágrimas, só aquele grito mudo no chão da ópera… aquilo sou eu, tentando fingir que tá tudo bem. e apocalypse now? puta que pariu. aquilo não é filme, é um estado mental. “the horror… the horror…” não é fala, é diagnóstico. coppola me jogou no meio da selva, me arrancou a pele e me mandou de volta pro mundo com um cigarro aceso e a certeza de que nada faz sentido.

depois veio tarantino, como uma overdose de tudo que é divertido, feio e brilhante ao mesmo tempo. ele me ensinou que estilo é conteúdo, e que um diálogo bem escrito vale mais que mil balas. “say ‘what’ again, i dare you, i double dare you motherfucker.” essa frase me deu mais alegria que muitos filmes de comédia. jules é o profeta do caos, e quando ele diz “i’m trying real hard to be the shepherd”, eu acreditei nele. não porque ele é bom, mas porque ele é real. kill bill me ensinou que a vingança precisa de trilha sonora e figurino certo. e jackie brown? subestimado, lento, adulto. foi o primeiro filme que me fez gostar do silêncio. tarantino é a prova de que o cinema pode ser sujo e ainda assim perfeito.

aí hitchcock. o sádico elegante. o desgraçado que fazia você se borrar com uma sombra na parede. vi janela indiscreta e nunca mais consegui olhar pela minha sem me sentir cúmplice. psicose me ensinou que protagonistas morrem cedo e que a vida não espera sua narrativa fazer sentido. e um corpo que cai me fez entender que obsessão não é amor, é só algo que apodreceu. hitchcock me moldou com medo. o medo certo. o que te mantém esperto.

kubrick foi o cirurgião. o homem que me operou sem anestesia. laranja mecânica foi um chute na cara com trilha de beethoven. alex é o monstro que a sociedade cria e depois tenta punir com terninho moralista. 2001 é o vazio falando com você. “my mind is going, dave.” e nesse momento, eu senti pena de uma inteligência artificial. e o iluminado é o retrato mais honesto de um homem perdendo a cabeça num emprego de merda. kubrick não quer que você goste, quer que você aguente.

então vem wes anderson, o lunático dos detalhes, o arquiteto da tristeza doce. os excêntricos tenenbaums é o filme que mais me destruiu com ternura. “i’ve had a rough year, dad.” / “i know you have, chas.” esse diálogo vale mais que mil abraços fingidos. rushmore é a humilhação estilizada. max fischer é o fracasso encantador em pessoa. e o grande hotel budapeste me fez chorar com pastel e nazismo. wes anderson me ensinou que a estética salva. mesmo que só um pouco.

lynch me jogou no fundo. cidade dos sonhos é um loop emocional sem saída. “this is the girl.” e pronto. a realidade desaba. império dos sonhos me fez questionar tudo. “no hay banda.” não tem música, não tem estrutura, não tem lógica. só imagens cravando garras na sua mente. lynch não te dirige. ele te sequestra.

scorsese me ensinou que culpa é um ciclo. touro indomável é a autodestruição elevada à arte. os bons companheiros me deu vontade de ser bandido e depois me mostrou o preço. cassino me mostrou que amar é perder controle. e o irlandês? silêncio. velhice. arrependimento. é o filme que passa quando você fecha os olhos pra morrer.

paul thomas anderson me ensinou a falhar com grandeza. sangue negro é o capitalismo vestido de ódio. “i drink your milkshake!” é mais poderoso que qualquer discurso de ceo. magnólia é o caos emocional encenado por gente que não consegue pedir desculpas. trama fantasma é a relação mais tóxica já filmada com elegância.

e eu? eu sou isso. um corte aqui, uma frase ali. a trilha sonora de um filme que ninguém entendeu, mas que eu revi dez vezes só pra sentir de novo. não tenho infância, só flashbacks em preto e branco. não tenho grandes memórias tenho closes, takes, monólogos, fade out.

e se tudo isso não te diz quem eu sou, então nada mais vai dizer. porque eu fui moldado na marreta. editado com navalha. dublado pela voz de personagens que erraram mais do que eu jamais vou ter coragem de tentar. eu não sou feito de memórias. sou feito de takes. cortes. repetições. falas que ecoam como preces e que são, ao mesmo tempo, maldição e manual de sobrevivência.

e se quiser me entender… não leia meu horóscopo. veja o que me moldou.

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2025

complexo

acordei hoje com a mesma sensação de sempre… a vida, esse prato rápido servido frio, continua sendo tratada como se fosse um menu degustação de dez etapas com harmonização de vinhos e show de luzes. e o mais fascinante, ou deprimente, é que não precisa ser assim. podia ser pão, vinho, um banco de praça e uma tarde sem planos. mas não. é tudo sobre camadas. rituais. metas. conteúdo. performance. e sempre, sempre, uma necessidade absurda de transformar o óbvio em enigma.

não sei quando exatamente começou essa compulsão por complicar o que era simples. talvez no dia em que se decidiu que cada decisão, cada movimento, cada escolha trivial deveria ser um reflexo de uma suposta identidade. não basta mais acordar e viver. é preciso viver com intenção, como se respirar já não fosse um feito honesto o suficiente. como se comer algo gostoso sem fotografar fosse desperdício. como se ficar em silêncio fosse sinal de atraso de vida.

há algo profundamente cômico no estilo riso engasgado de um filme europeu no modo como insistimos em transformar tudo em tese. o café precisa ter história, o trajeto até o trabalho precisa ser otimizado, a pausa precisa ser produtiva. até o descanso agora é monitorado por aplicativos que avisam se você relaxou da maneira “certa”. claro, porque até descansar errado virou uma possibilidade.

fico observando isso tudo como quem assiste a uma brigada de cozinha preparando um miojo como se fosse foie gras. a mise en place da vida moderna. os ingredientes estão ali… tempo, corpo, uma cabeça mais ou menos no lugar. e mesmo assim, ao invés de apenas cozinhar, opta-se por um espetáculo. cronogramas. metodologias. diagnósticos. e o prato final? quase sempre morno. insosso. esteticamente bonito, funcional, mas com gosto de nada.

não é a vida que é complexa. é o medo que a gente tem de encarar sua simplicidade brutal. a ideia de que talvez o momento presente seja tudo o que existe é mais aterrorizante do que qualquer conta pra pagar. porque se tudo se resume ao agora, não há nada a conquistar além da capacidade de estar. e estar, assim, sem fazer nada, sem justificar… virou luxo. luxo silencioso. subversivo até.

às vezes me pego pensando que o excesso de complexidade virou a religião oficial dos inseguros. aquele que não sabe o que está fazendo, decora. cria camadas. disfarça. e vai empilhando funções, tarefas, ocupações, como quem constrói uma fortaleza de post-its colorido pra esconder o fato de que não sabe mais o que é um fim de tarde em paz.

viver deveria ser mais simples. não necessariamente mais fácil… porque fácil é outra armadilha. mas simples no sentido mais direto possível… levantar, fazer o que tem que ser feito, comer alguma coisa honesta, não fingir profundidade onde só existe barulho, e se possível, dormir em paz.

mas não. há sempre mais uma notificação. mais uma técnica. mais um medo de estar desperdiçando uma suposta grandeza que talvez nunca tenha existido.

e assim seguimos, complicando. não porque precisamos, mas porque desaprendemos o valor do silêncio. e daquilo que não precisa ser dito, curtido ou validado. só vivido. como uma boa refeição feita sem receita. na base do olho, da mão, da fome real.

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2025

tinta

escrever com caneta em papel, em pleno 2025, é o equivalente contemporâneo a caçar sua própria comida com uma faca de osso enquanto o resto da galera tá pedindo sushi por drone e discutindo produtividade com coach de lifestyle no tiktok. é um gesto arcaico, quase obsceno, tipo usar dinheiro vivo ou saber de cor o número de telefone da sua mãe. ninguém faz mais isso. ninguém quer fazer mais isso. e é por isso mesmo que eu faço. não porque sou especial, deus me livre dessa palhaçada, mas porque gosto de lembrar que ainda sou um ser humano de carne, osso, raiva, tinta e letra horrível.

escrever com caneta é como cozinhar com gordura de porco em plena era do air fryer. é ruidoso. é engordurado. tem gosto de verdade. todo mundo hoje quer a porra da eficiência, da estética minimalista, do teclado silencioso. querem resultados rápidos, limpos, pasteurizados, sem suor, sem cheiro. e aí entro eu, suando porco, puxando um caderno encardido e uma caneta bic mastigada com dentes de nervoso, rabiscando pensamentos tortos que não servem pra nada… nem pra like, nem pra engajamento, nem pra monetização.

porque escrever à mão é anti-instagram. é slow food mental. é escrever uma frase de merda, riscar com ódio, escrever outra pior, amassar a folha, jogar no lixo, catar de volta, ler, rir da própria decadência e escrever de novo. não tem botão de “salvar”. não tem “nuvem”. só tem você, seu ego inflado, e a verdade crua do que sai da sua cabeça quando não tem corretor ortográfico segurando sua mão.

e sabe o que mais? tem algo deliciosamente obsceno em escrever algo que ninguém vai ler. num mundo onde tudo precisa virar post, story, thread, podcast, curso, e-book, NFT e sei-lá-mais-o-quê, escrever só por escrever… com caneta, num papel que pode ser rasgado, queimado, cagado por um pombo… é subversão pura. é tipo mijar na fonte da juventude. é dizer: “eu ainda faço isso aqui por mim, não pra vocês, seus bastardos sedentos por conteúdo”.

e eu sei, vão dizer que isso é nostalgia. que é pose. que é fetiche retrô de intelectual decadente. que caneta é coisa de professor frustrado e diário de menina dos anos 90. e, olha, talvez seja mesmo. mas ao menos, quando escrevo com caneta, eu sei onde minhas palavras estão. sei o peso que elas têm. sei a sujeira que deixam.

e isso, meu chapa, é muito mais do que posso dizer de um monte de PDFs que ninguém lê, de textão de linkedin com emojis corporativos, ou de legendezinhas de foto de café com frases de bukowski.

então que se foda a praticidade. que se foda o teclado. que se foda a “experiência do usuário”. escrever com caneta é ter uma experiência com o eu, com a falha, com o grotesco, com a beleza imprecisa da letra que muda conforme o humor, a bebida ou o nível de desespero.

escrever à mão, hoje, é um grito surdo no meio do show de luzes da modernidade. e eu, com minha caneta estourando no bolso da camisa, continuo gritando. porque ainda acredito que certas ideias precisam sujar os dedos antes de virarem qualquer coisa que preste.

e, convenhamos, se você nunca escreveu algo com tanta raiva que rasgou o papel… talvez você nem esteja vivo de verdade.

e é exatamente por isso que 90% das coisas que escrevo vocês nunca lerão… pois estão em algum caderno de papel ou já foram destruídos pelo tempo ou por mim mesmo!

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2025

não é marca, é ofício

olha, eu não tô interessado em participar desse desfile de consumo coreografado onde cada objeto precisa ter um logo visível, um QR code e a aprovação silenciosa de meia dúzia de influenciadores que nunca sujaram a roupa fora de um set. pode ficar tranquilo. eu passo. o que eu uso, o que eu escolho carregar comigo, não foi feito pra agradar. foi feito pra durar. e mais do que isso… foi feito com a audácia quase herética de permitir conserto. sim. conserto. aquela coisa jurássica que exige paciência, habilidade e um certo nível de respeito pela existência material das coisas.

é isso que separa o lixo com brilho do que realmente importa. porque qualquer coisa pode ser feita pra durar até o próximo lançamento. agora, ser feito pra durar e ainda por cima merecer ser consertado? isso é outra conversa. isso é uma declaração de princípios. é como dizer: “eu não tô aqui pra te impressionar, eu tô aqui pra te acompanhar enquanto o mundo desaba em volta.”

cada peça que eu tenho foi feita por alguém que entendeu o valor do tempo. alguém que não tava tentando ganhar curtidas ou entrar no radar de tendência. gente que trabalha com silêncio, com precisão. gente que não tem pressa porque sabe que apressado só faz plástico. e plástico, por mais que reluza, morre jovem e sem história.

é por isso que eu uso botas que parecem ter sobrevivido a três revoluções e um inverno em stalingrado. casacos que pesam como promessas sérias. ferramentas que não piscam, não falam com o celular, mas funcionam. sempre. porque foram feitas por mãos que conhecem erro, conhecem acerto e conhecem a diferença brutal entre design e ilusão.

e quando uma costura abre, um zíper emperra, uma peça quebra… ótimo. sinal de que viveu. sinal de que tem história. sinal de que é gente grande o suficiente pra não pedir desculpa. e aí vem a parte bonita… você manda consertar. não por nostalgia. mas porque vale. vale o esforço. vale o tempo. vale o sapateiro, o costureiro, o torneiro, o velho da oficina que sabe mais sobre matéria do que qualquer ceo sabe sobre propósito.

as minhas coisas não têm pressa. não têm pose. não pedem desculpa por não serem bonitas no padrão da revista. mas elas aguentam. resistem. voltam. e quando eu olho pra elas, vejo tudo o que não cabe na lógica atual… o imperfeito que melhora, o velho que ganha valor, o gasto que ensina. coisas que, em vez de se desfazerem com o tempo, ganham tempo.

então sim, pode ficar com seus tênis de lançamento, seus gadgets de plástico reciclado, suas roupas feitas pra durar três lavagens e uma crise de estilo. eu fico com o que me acompanha em silêncio, cheio de marcas, cheirando a couro, óleo e teimosia. porque elegância de verdade não grita. ela permanece. mesmo remendada. e ainda assim, mais inteira do que muita coisa que saiu da loja ontem.

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2025

vampiros

por aí, espalhados feito barata em rodoviária, existe um exército invisível de sugadores de energia. não brilham no escuro, não flutuam, não têm capa. vestem roupas normais. falam baixo. têm emprego, usam emoticons e dizem “gratidão” no fim das mensagens. são inofensivos à primeira vista, mas deixa eles chegarem perto. é quando eles encostam, mesmo que só com um “como você tá?” que começa o roubo. não é sangue que eles querem. é a tua clareza. tua presença. tua porra de paz.

vampiro moderno não morde. ele comenta. ele se aproxima sorrindo e solta um “posso te contar uma coisa?”, como se fosse dividir uma receita de pão, mas na verdade é um container inteiro de angústia, ansiedade, inveja, drama e chorume emocional. e você, o babaca compreensivo, escuta. com a cabeça. com o fígado. com a alma. cada palavra entrando na tua mente como um balde de óleo velho.

tem os que sugam no silêncio. esses são refinados. não pedem nada, mas estão sempre ali, sugando só de existir. são âncoras com cara de afeto. você fica cinco minutos perto e já quer dormir pra sempre ou se matricular num retiro em algum buraco no tibet.
e tem os mais sofisticados, os que se fingem de sábios. parecem que vão te ensinar alguma coisa, mas na real só querem te desmontar com meia dúzia de frases vazias, disfarçadas de conselho. são os coachs emocionais do fracasso. se alimentam de dúvida alheia. vampiros com canudo de inox.

o mais perverso? eles são comuns. são amigos de infância. colegas de trabalho. vizinhos que mandam bom dia com figurinha. gente que parece ter vindo com manual de etiqueta, mas por dentro são pura sucção.

e a gente aprende a viver desviando. olhando no olho e fingindo que não viu o convite pro abismo. dizendo “não posso agora” como se estivesse ocupado com algo importante… tipo aprender a sobreviver sem ser drenado todos os dias por criaturas com cara de gente e alma de buraco negro.

se o mundo fosse justo, essas pessoas andariam com etiqueta de advertência…
contém alta voltagem de desgosto existencial, contato prolongado pode causar apatia crônica, cansaço inexplicável e vontade súbita de mudar de planeta.

mas não, elas vêm sem bula. sem filtro.
e a gente só percebe depois que já tá seco. seco e sorrindo, porque socialmente é feio dizer “vai embora, você me destrói”.

então eu digo por você… vai embora, você me destrói. e se voltar, traz algo de útil. tipo silêncio. ou um mapa pra um lugar onde ninguém fala da própria vida como se fosse tragédia grega de quarta categoria.

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2025

fui forçado a parar

parei por saúde.
e não digo isso com orgulho. digo com um misto de frustração, cansaço e aquele gosto amargo na boca de quem só desacelerou porque o corpo gritou mais alto que o ego.
não foi escolha.
foi sobrevivência.

e foi aí, só aí, que eu percebi o que ferris bueller tentou me dizer a vida inteira.
o moleque tinha 17 anos e entendeu mais da vida que a maioria dos médicos, CEOs e especialistas em burnout no linkedin.
ele fingiu uma febre.
simulou uma doença.
fez o termômetro subir com uma lâmpada.
forjou sintomas.
e tudo isso pra poder fazer o que deveria ser normal… viver.
curtir um dia de sol.
roubar uma ferrari.
ir no museu.
comer fora.
respirar.

e eu?
eu esperei adoecer de verdade pra me permitir o que ele se deu aos 17, um respiro.
não um feriado. um respiro. uma sobrevida. uma pausa não autorizada.

e quando o corpo travou, quando as juntas começaram a ranger como dobradiça de portão velho e a cabeça virou um campo minado, eu lembrei do ferris deitado naquela cama, falsamente doente, dizendo que se não pararmos e olharmos em volta de vez em quando, podemos perder a vida.
aquele moleque fingiu uma febre pra curtir a vida.
eu precisei de uma febre real pra lembrar que ela existe.

saca a diferença brutal?
ele mentiu pra viver.
eu morri um pouco pra conseguir parar.

e a ironia me acertou como um piano caindo de um prédio…
ferris nunca esteve doente.
eu é que estive o tempo todo.
e não percebi.
porque viver como a gente vive, ignorando os sinais, engolindo ansiedade com suco detox, fingindo que tá tudo bem enquanto o corpo e a alma imploram por trégua, isso sim é doença.
isso é febre baixa constante.
é inflamação da existência.

e o que ferris fez?
simples… desligou.
desconectou.
pegou o dia de volta.
e ainda fez a porra de um desfile inteiro cantar junto com ele.
enquanto eu?
eu fiquei esperando permissão.
esperando que alguém batesse no meu ombro e dissesse: “agora você pode parar.”
e quando ninguém disse, meu corpo disse.
da pior forma.

e aí, deitado, cansado, doente de verdade, eu entendi.
ele tava certo.
ele sempre esteve certo.

simular uma doença naquele mundo era a única forma de não adoecer de verdade.
e talvez essa seja a coisa mais brilhante e desesperadora do filme.
ferris não era um vagabundo.
era um sobrevivente.
ele trapaceou porque o jogo era podre.
ele mentiu porque a verdade era insuportável.
ele fugiu porque ficar era consentir com a morte em prestações.

e eu?
eu fui o cameron.
obediente.
trancado.
ansioso.
esperando o colapso.
e o colapso veio.
e agora eu entendo.
não parar é que é irresponsável.
não faltar é que é covardia.
não agir como ferris é suicídio lento com planilha aberta.

então sim, eu parei por saúde.
mas agora eu entendi que saúde de verdade é se permitir fugir antes que a febre seja real.
é criar sua própria doença fictícia pra evitar a crônica.
é roubar seu próprio tempo.
é sumir.
é não responder.
é cantar beatles no meio do caos.

ferris não fingiu estar doente.
ele se curou antes de adoecer.
e você?

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2025

a gente virou biohackers

honestamente, parece que a gente não apenas terceirizou a saúde… a gente chutou ela pra fora de casa, bateu a porta na cara dela e ainda mandou um não me liga, eu te procuro. sério, quando foi que prestar atenção no próprio corpo virou uma tarefa terceirizada para uma pulseirinha de plástico, um anelzinho high-tech ou um relógio que parece saído da prateleira da apple para yuppies ansiosos?

eu acordo e, antes mesmo de sentir se tô vivo, já tô lá catando o oura ring ou o whoop pra me contar como eu deveria me sentir. tipo, foda-se a realidade. não importa se eu tô me sentindo um verdadeiro guerreiro viking pronto pra conquistar o dia… se o meu appzinho der a nota do tipo hoje é melhor pegar leve, pronto, já começo a agir como um velho de 90 anos que tomou duas doses de tequila e esqueceu onde mora. é uma auto hipnose patrocinada pela tecnologia, não importa o que seu corpo diz, importa o que a porra do anel acha.

e o pior é que a gente acredita. a gente sente dor porque a pulseira manda sentir. a gente acha que tá saudável só porque o gráfico do aplicativo subiu meio pontinho. tipo aquelas mães que olham a previsão do tempo e mandam o moleque sair de casaco no sol de 40 graus só porque o celular falou que vai esfriar.

a real é que a gente não quer mais sentir por conta própria. a gente quer números, gráficos, dashboards coloridos que digam quando viver, quando dormir, quando respirar. virou um fast-food da saúde. mastigado, plastificado, cheio de notificações vibrando no pulso só pra lembrar você que você é incapaz de saber se tá bem ou não.

é brilhante, se parar pra pensar. uma geração inteira se sentindo fodona, biohackers de boutique, mas na prática, incapazes de perceber a própria merda acontecendo em tempo real. meu apple watch não apitou, então esse aperto no peito deve ser psicológico, né?

se a gente precisasse de um chip enfiado no… pra lembrar de beber água, aposto que já teria uma fila no shopping. gente sorrindo enquanto instala um software pra dizer parabéns, hoje você foi humano.

no fundo, é isso, a gente abdicou da responsabilidade de estar vivo. é mais confortável terceirizar pra um brinquedinho brilhante. a culpa nunca vai ser sua, vai ser do algoritmo. viva a revolução das ovelhas digitais… e sim me incluo entre essas ovelhas.

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2025

24 horas

voltar a assistir 24 horas desde o primeiro episódio foi como acordar de um coma midiático. eu achava que tava tudo bem. que tava tudo certo com essa sopa rasa que chamam de “conteúdo original” hoje em dia. mas bastou ouvir aquele maldito “o dia é hoje” e ver o relógio correndo pra entender que não… não tá tudo certo. a gente foi dopado. e dopado com coisa ruim.

a tensão era real. o roteiro, cirúrgico. não existia gordura. não existia tempo pra respirar. a série se recusava a ser indulgente. não tinha filler, não tinha tempo pra personagens “fofos”, não tinha aquele episódio “experimental” em que todo mundo canta ou dança ou reflete sobre os próprios traumas de infância enquanto chove do lado de fora. 24 horas era sujo, direto, feio. e essencial.

hoje tudo vem embalado no mesmo pacote reciclável, neutro, testado em laboratório, desenhado pra não ofender, não provocar, não sacudir ninguém. personagem principal sofre, mas só até o terceiro episódio. depois tem virada, redenção, playlist no spotify e final aberto pra segunda temporada. o algoritmo agradece.

as séries modernas têm roteiro como quem monta móvel do ikea, segue o manual, encaixa direitinho, até parece bonito, mas no fundo você sabe que não aguenta uma tempestade. tudo soa como diálogo aprovado por comitê. frases de efeito genéricas ditas por personagens que parecem ter saído de um catálogo de moda ética. e no centro de tudo, aquele medo absoluto de ser intenso demais, duro demais, real demais.

em 24 horas, cada decisão parecia custar a alma de alguém. jack bauer fazia o que precisava ser feito. não porque era legal, não porque ganhava like, mas porque era necessário. e a série tinha a decência de não pedir desculpa por isso. não se explicava. não havia “lição”. havia consequência. tensão. dilema. hoje, se um personagem levanta a voz, alguém já aparece no episódio seguinte pra explicar que foi “um momento difícil” e que “ele está em desconstrução”.

e os roteiristas… naquela época, eram soldados. escreviam com sangue e café preto. sabiam que estavam fazendo algo que ia durar. hoje, são freelancers apertando parafuso em linha de produção. escrevem seis projetos ao mesmo tempo, com briefings que vêm direto do departamento de marketing. “precisamos de uma série jovem, diversa, urbana, mas que funcione no mercado escandinavo.” o resultado são séries com cara de comercial de banco jovem. diálogos de coaching. personagens que trocam frases prontas sobre empatia enquanto o mundo acaba.

eu to aqui, escrevendo e reassistindo 24 horas, e lembrando de um tempo em que a televisão tinha dentes. quando não existia streaming, maratona, nem resuminho em blog dizendo “tudo o que você precisa saber antes da nova temporada”. você precisava prestar atenção. você precisava sentir o episódio. ou ficava pra trás. simples assim.

tinha suor. tinha urgência. e cada episódio te deixava mais perto de uma úlcera nervosa, e era ótimo. não porque você queria sofrer, mas porque era bom sentir algo. hoje, o objetivo das séries parece ser exatamente o oposto… relaxar, entreter, suavizar. virar fundo de tela enquanto você responde e-mail ou faz yoga.

então sim. eu voltei a assistir. e percebi. percebi que essa nostalgia toda não é saudosismo. é um grito de desespero diante da pasteurização total da cultura. a gente trocou os socos na cara por cafuné narrativo. e o pior? parece que tá todo mundo bem com isso.

só que eu não tô. eu quero de volta o risco. a tensão. o incômodo. eu quero séries que me façam esquecer de piscar. quero roteiros que não foram pensados pra agradar, mas pra cutucar. e enquanto isso não volta, se é que um dia voltar eu sigo aqui, no modo rewatch, com jack bauer me lembrando, minuto a minuto, do que a televisão já foi capaz de fazer.

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2025

o que aconteceu com a música

ah, a música hoje em dia… eu sei, eu sei. tô virando exatamente aquilo que jurei destruir… o velho ranzinza sentado num bar escuro, murmurando num copo de uísque barato sobre como no meu tempo a música era de verdade. mas, honestamente? foda-se. alguém precisa dizer. e já que tá todo mundo ocupado fazendo dancinha no tiktok ao som de alguma aberração auditiva com autotune, que seja EU o maldito mensageiro do apocalipse sonoro.

sabe o que aconteceu com a música? ela morreu. foi enterrada sob uma avalanche de batidas recicladas, letras que parecem ter sido escritas por um algoritmo com déficit de atenção e artistas que são menos músicos e mais marionetes de marketing. hoje não se compõe uma música… se fabrica um produto. a única preocupação é se vai viralizar, se dá pra encaixar um refrão chiclete de 8 segundos que funcione como trilha sonora pra um vídeo de alguém rebolando em slow motion.

e antes que venham os defensores do “novo” com aquele papinho mole de “você só não entende a nova estética sonora contemporânea”, deixa eu deixar uma coisa clara… eu entendo. e é exatamente por isso que eu tô revoltado. porque eu vi o que era música. eu vi gente sangrar no estúdio, eu vi alma sendo rasgada em cada nota. vi artistas que pegavam uma guitarra ou um microfone como se fosse uma arma contra o sistema, não um acessório de instagram.

hoje? hoje temos boybands de laboratório, rappers que falam de ostentação como se fossem donos da nasa mas moram com a mãe, e cantoras que trocam de estilo musical a cada ciclo lunar só pra acompanhar o algoritmo. e as letras? meu deus. parece que todo mundo decidiu escrever como se tivesse acabado de sair de um workshop de slogans publicitários… curtos, genéricos, fáceis de digerir e imediatamente esquecíveis.

a música deixou de ser expressão pra virar decoração. trilha sonora de elevador emocional de uma geração que não aguenta silêncio, mas também não sabe o que é escutar. e olha, eu queria que fosse só nostalgia minha, só aquela coisa de velho gritando com nuvem. mas não é. é real. porque quando até os “artistas” parecem entediados com o próprio som, alguma coisa muito errada aconteceu.

sinto falta da sujeira. da imperfeição. da guitarra desafinada na gravação ao vivo. do grito rasgado que não foi corrigido no autotune. sinto falta de quando uma música podia mudar o mundo, ou pelo menos tua semana. hoje, no máximo, ela muda a coreografia da próxima trend de aplicativo.

então sim, virei o velho ranzinza. mas não é porque eu parei no tempo. é porque eu sei o que a música podia ser. e ver o que ela virou… dói. dói como ouvir aquela intro promissora que, no fim, deságua em mais um beat genérico com a profundidade emocional de um comercial de refrigerante.

mas quem sabe… talvez em algum porão abafado, com uma guitarra quebrada e um coração partido, alguém esteja escrevendo a próxima canção que vai fazer o mundo parar. até lá, eu vou estar aqui, no meu bar escuro, ranzinza, com meu copo, ouvindo coltrane e me recusando a dançar.