quando eu ouvi glenn gould pela primeira vez, entendi que tinha passado a vida inteira ouvindo mentira. mentira embalada, vendida, ovacionada. piano como decoração sonora, bach como papel de parede elegante. aí vem esse canadense pálido feito papel fotográfico vencido, senta numa cadeira de madeira ridiculamente baixa, e toca como se o piano fosse um artefato extraterrestre. e, claro, ele resmunga. canta. murmura. sussurra como se estivesse em transe. indo contra todas as regras… sim ele murmura a música que toca…
e sim, aquilo é desconcertante. porque não foi feito pra entreter. não é um recital, não é um espetáculo, não é uma experiência instagramável. é dissecação. é glenn gould arrancando a polidez da música clássica como quem arranca uma casca de verniz barato de um móvel antigo. ele não te convida. ele te sequestra.
e o que ele faz com as goldberg variations em 1955… é indecente. rápido, claro, meticuloso até a perversão. soa como se ele estivesse limpando o excesso de emoção da peça com solvente. cada nota é colocada no lugar com uma convicção quase doentia, como se a música estivesse finalmente sendo tocada sem a mentira da emoção forçada.
só que aí você começa a ouvir diferente. começa a perceber que, por trás da precisão cirúrgica, existe algo ainda mais perigoso, intenção. glenn gould não está interpretando bach. ele está reivindicando bach. tomando posse da obra com a frieza e a ousadia de quem sabe que vai ser odiado por isso, e não se importa.
e então, do nada, lendo sobre ele, me surge uma frase dele em uma entrevista. não num livro de autoajuda, não num ted talk, não como título de post motivacional. ele solta como quem fala a previsão do tempo…
“o propósito da arte não é uma liberação momentânea de adrenalina, mas a construção ao longo da vida de um estado de admiração e serenidade.”
e aí tudo faz sentido. porque glenn gould não queria sua euforia, sua lágrima no canto do olho, seu “bravo” ensaiado no fim da apresentação. ele queria algo incomparavelmente mais ambicioso, mudar permanentemente o seu silêncio. alterar o modo como você respira quando está sozinho diante de algo que não entende, mas que reconhece como verdadeiro.
em 1981, ano em que nasci, ele grava as goldberg de novo. mais devagar. mais denso. como se estivesse escavando a própria memória da música, procurando alguma coisa que a juventude veloz de 1955 não conseguia enxergar. a mesma peça. o mesmo gould. outro mundo. outro tempo. outro tipo de assombro.
e não é nostalgia. é método. é a prova de que a arte de verdade não quer te arrebatar, quer te reconfigurar. e que isso leva tempo. uma vida, talvez.
glenn gould entendeu isso. viveu isso. gravou isso. e o resto de nós segue aqui, ainda acreditando que arte é pirotecnia emocional. enquanto lá no fundo, naquele sussurro quase inaudível entre uma variação e outra, ele continua dizendo:
abri os exames como quem clica num e-mail com “importante” no título. esperando qualquer coisa, menos um lembrete de que meu corpo virou personagem secundário de um filme que já perdeu o controle do roteiro.
primeira cena… meu pâncreas, desesperado, agindo igual jack bauer em 24 horas. tentando evitar o colapso a qualquer custo, jogando insulina como se cada refeição fosse uma bomba relógio prestes a explodir. e a glicose? tecnicamente “ok”. sabe o que mais era tecnicamente ok? o navio do titanic antes de bater no iceberg. tá tudo certo… até não estar.
aí entram os triglicérides. altos. por quê? porque aparentemente tô me alimentando como figurante de os bons companheiros… muita energia, pouco critério. não importa se o pão é integral ou se o almoço vem numa embalagem sustentável o corpo sabe quando tá sendo enganado. e ele não perdoa.
o cortisol? meu deus, o cortisol. virou protagonista. se fosse filme, seria gladiador. eu, no meio da arena, estressado, suando, lutando contra leões hormonais com uma espada de plástico. e o público aplaudindo porque “pelo menos ele treina às vezes e posta story reclamando”. spoiler… isso não é vitória. é espetáculo de decadência com marketing embutido.
vitamina d? sumiu. desapareceu. tipo luke skywalker em o despertar da força… ninguém sabe onde foi parar, só sabem que faz falta. e a homocisteína? é o jigsaw do meu metabolismo. não aparece, não tem rosto, mas tá ali armando armadilha por armadilha. e eu, claro, sigo jogando o jogo achando que posso vencer só dormindo melhor no fim de semana.
isso aqui não é drama. é roteiro. um daqueles com arco lento, onde o protagonista só percebe que tá em perigo quando já é tarde demais. tô num momento o lobo de wall street, versão bioquímica. ostentando saúde no instagram, enquanto meu fígado me manda mensagens de sos por debaixo da mesa. resistência à insulina? acúmulo de tensão celular? metabolismo forçado? não é exagero é realidade editada com música pop e dancinha no feed.
e ainda dizem… “mas você não tá doente”. genial. é como dizer que o carro não quebrou, mesmo depois de rodar 30 mil km sem trocar o óleo. não quebrou, mas vai. e quando for, não vai ser bonito. vai ser michael bay, explosão, câmera lenta e arrependimento em 4K.
então não, eu não tô em crise. mas tô no ato 2 do filme. e se você conhece cinema, sabe o que vem depois… o momento em que tudo desmorona. e aí, meu amigo, não adianta mais dizer que “vai mudar”. porque o corpo já foi embora antes dos créditos.
e eu? continuo com a pipoca na mão, assistindo de camarote, achando que tenho controle do roteiro.
imagine a nova zelândia. aquele cartão postal do outro lado do mundo com cara de anúncio de agência de turismo… fiordes, ovelhas, montanhas, vulcões e um silêncio que beira o monástico. agora rasga essa paisagem idílica no meio com um helicóptero preto. dentro dele, não tá um mochileiro em busca de paz interior. tá um bilionário do vale do silício, carregando o equivalente a três pibs de país africano no bolso, pronto pra construir o bunker de seus sonhos. ali, naquele chão tremendo, ele quer cravar sua última aposta, sobreviver ao fim do mundo com luxo, wi-fi e hortinha hidropônica.
não é só peter thiel com sua tara libertária e aquela cara de quem processa a própria sombra. zuckerberg tem o seu. altman, huffman, palmer luckey… todos têm seus refúgios. bunkers que não são abrigos, são spas apocalípticos com sauna, estúdio de yoga, cinema, academia e até pista de boliche subterrânea. onde antes se estocava comida enlatada, agora se serve comida molecular. e onde se temia a radiação, hoje se discute qual iluminação de led é menos agressiva pra pele no inverno nuclear.
mas o que é mais nojento, e ao mesmo tempo fascinante é que essa galera não tá simplesmente fugindo do apocalipse. eles estão se escondendo do monstro que eles mesmos ajudaram a criar. as redes que polarizaram o mundo? as plataformas que deram palco pra teorias da conspiração? os sistemas que deixaram a informação menos confiável que o horóscopo da rádio local? tudo passou por eles. eles apertaram os botões. colheram os lucros. agora querem desaparecer.
e escolhem a nova zelândia. por quê? porque tem geografia remota, população pacífica, estabilidade política e… passaportes fáceis. thiel, por exemplo, virou cidadão neozelandês em doze dias. DOZE. tem gente que espera isso pra tirar rg em diadema. ele comprou terra perto de wanaka e tentou construir um complexo que parecia saída de um catálogo da james turrell… arquitetura camuflada, 10 quartos, integração com a natureza. o conselho local negou. até os neozelandeses, pacatos e diplomáticos, disseram “calma lá, peter, isso aqui não é fortaleza libertária, é uma colina”.
só que isso é só a superfície. por baixo da terra, literalmente, cresce o verdadeiro império. há relatos de dezenas, talvez centenas de bunkers privados enterrados sob propriedades que vão de queenstown a christchurch. é um clube secreto. informal. mas real. os terrenos são comprados por empresas offshore, os contratos são blindados, e os operários são orientados a manter silêncio absoluto. como se estivessem construindo pirâmides modernas… só que, em vez de múmias, abrigam egos de bilhões de dólares com medo do próprio reflexo.
mas não se engane, esse impulso de escapar do próprio tempo é velho. os magnatas do século xx como carnegie, rockefeller, dupont também tinham seus esconderijos. só que eram menos sofisticados, mais discretos, mais… humanos. eles construíam fortalezas no campo, tinham cofres na suíça, trancavam coleções de arte e petróleo no porão, mas não enterravam suas famílias em cápsulas tecnológicas com filtro hepa. até os barões ladrões tinham alguma relação com o mundo real. os de hoje preferem apagar o mundo da equação.
enquanto os titãs da velha guarda financiavam bibliotecas, universidades, centros médicos mesmo que por culpa ou vaidade, os bilionários atuais investem em startups de imortalidade, ia totalitária, cápsulas criogênicas e no pacote completo de “como fugir da merda sem se sujar”. os ricos de antes dominavam o mundo… os de agora fogem dele. são arquitetos da distopia que, por alguma razão, acham que ela não vai encontrá-los debaixo da terra.
mas o que me fez pesquisar sobre essa loucura toda e chegar nesse texto foi o filme mountainhead, da hbo, entra com precisão cirúrgica. não como apêndice perdido, mas como radiografia dessa elite em fuga. dirigido por jesse armstrong, o mesmo que destrinchou a alma podre de herdeiros em Succession, o filme é uma sátira brutal ambientada num bunker onde quatro bilionários se escondem enquanto o planeta desaba. mas em vez de cooperação ou redenção, o que se vê ali é exatamente o que está fermentando sob os campos da nova zelândia… paranoia, traição, jogos de poder, egos inflados e um tédio tão espesso que dá pra cortar com faca de manteiga.
os personagens do filme são arquétipos refinados dessa nova casta de deuses covardes. venis, uma espécie de frankenstein entre musk e zuckerberg, vê sua criação, uma IA sem freios, começar o colapso. randall, uma versão definhada de thiel, busca imortalidade com transfusões e downloads de consciência. jeff segura o botão que pode salvar tudo, mas hesita, porque salvar o mundo não dá retorno financeiro imediato. e hugo, o novato, o inseguro, tenta entrar nesse olimpo subterrâneo com a elegância de quem veste black tie pra trabalhar de garçom.
e o mais genial, no filme, o bunker não é refúgio. é prisão. é inferno. é o espelho claustrofóbico do medo que essa elite carrega. a estrutura que deveria protegê-los vira o cenário onde a verdade apodrece. e a maior piada, lá dentro, eles continuam se destruindo. como se o apocalipse do lado de fora fosse só pano de fundo. a verdadeira tragédia é eles mesmos.
mas voltando de onde comecei, o elemento mais cruel dessa comédia é o solo onde tudo isso acontece. a nova zelândia, com sua beleza virgem, se torna palco de um suicídio arquitetado pela vaidade. esses bunkers, por mais tecnológicos que sejam, estão fincados sobre falhas geológicas ativas. e não importa quantos filtros, armas ou painéis solares eles instalem quando o chão decidir se mexer, vai engolir tudo com a mesma delicadeza que uma baleia engole plâncton.
então a nova zelândia, essa ilhazinha romântica, virou a cápsula de fuga de uma elite que não acredita mais em nada, nem no sistema, nem nas pessoas, nem na própria criação. eles se enterram como faraós modernos, cercados de tecnologia, criptomoeda, filtros de ar e delírios de longevidade. e nós? nós ficamos aqui em cima, olhando pro céu, esperando o próximo tremor, e ouvindo os boatos sobre aquele novo complexo perto do lago, aquele que ninguém pode visitar, mas onde os helicópteros pousam de madrugada.
porque esse é o mundo em 2025. os de cima se enterram. os de baixo esperam. e o planeta, silenciosamente, gira como quem segura o riso, sabendo que o bunker mais caro do mundo não vai adiantar nada quando a terra decidir que já teve o suficiente.
por muito tempo eu me perguntei como ser mais produtivo como pai. parecia uma pergunta nobre, dessas que você fala alto numa roda de amigos pra parecer um ser humano elevado, iluminado, equilibrado. mas no fundo, lá no fundo, eu sabia que a única resposta honesta, crua, verdadeira mesmo era uma só… pra ser mais “produtivo” como pai eu teria que simplesmente negligenciar meu filho. é isso. simples, direto, sujo. e mais do que uma conclusão minha, é um fato histórico. a humanidade inteira construiu sua ideia de sucesso masculino em cima de homens que estavam sempre longe dos filhos. ou viajando, ou no trabalho, ou em guerra, ou no bar. o “pai exemplar” era, essencialmente, um cara que pagava as contas e aparecia uma vez ou outra com um brinquedo caro e um sorriso cansado.
só que hoje, eu não tenho orgulho nenhum disso. na real, quanto mais eu penso sobre isso, mais vergonha eu tenho de toda essa mitologia tosca do pai provedor, pai ausente, pai-herói de powerpoint. hoje, o que me dá orgulho não é o quanto eu produzo. é o quanto eu tô presente. o quanto eu tô ali, inteiro, colado, carne e osso e alma, pro meu filho de quatro anos.
eu faço o lanche dele. corto fruta, passo manteiga com a precisão de um cirurgião e o afeto de um monge zen. sirvo o almoço. escolho ingredientes, ajudo a cozinhar, provo, invento prato que nem nome tem. levo ele pra escola. e ouço ele falar sobre alienígenas, tubarões e sonhos malucos enquanto o mundo passa por fora da janela. converso com ele. olho no olho, respondo com palavras inteiras, sem “uhum” automáticos. brinco. de verdade. sento no chão, me sujo, entro no mundo dele como se eu também tivesse quatro anos. pego na escola. abraço forte, beijo na testa, mochila caída no ombro. raramente fico longe dele. e quando fico, falta um pedaço. parece que o dia perdeu o sabor.
isso não me fez mais produtivo. me fez mais humano. mais presente. mais real. e quer saber? foda-se a produtividade. foda-se essa ideia de que ser bom é render. não quero render. quero viver. quero estar ali, junto, dia após dia, vendo ele crescer, tropeçar, rir, perguntar coisa absurda. porque a verdade que ninguém quer admitir é que o tempo que você passa com seu filho nunca vai te dar uma promoção. nunca vai virar um troféu. nunca vai te deixar mais rico. mas vai te deixar completo. e isso, meu amigo e amiga, é o tipo de riqueza que ninguém te ensina a querer.
eu escolhi estar. todo dia. e não tem spreadsheet, kpi ou guru de terno slim fit que vai me fazer voltar atrás. meu filho tem quatro anos. e eu tô aqui. com ele. por ele. sendo pai de verdade. sem glamour, sem filtro. só presença. presença total.
e quer saber… isso sim é punk rock. isso sim é viver.
olha, eu criei o realidade real porque não aguentava mais ver esse desfile de pretensão em câmera lenta que virou o substack. essa cultura de autoajuda gourmetizada, onde todo mundo escreve como se tivesse saído de um retiro espiritual no himalaia, mas no fundo só quer seu cartão de crédito e um like passivo-agressivo. substack é tipo aquele cara no bar que começa falando de política e termina te vendendo um curso online sobre “autenticidade”. e você ainda paga a conta.
o realidade real nasceu porque eu precisava de um lugar onde pudesse escrever sem precisar converter pensamento em boleto. onde a palavra ainda valesse por si, sem precisar de preview gratuito, chamada apelativa ou “recompensa para apoiadores nível ouro”. aqui, se você quer ler, leia. se não quiser, também ótimo. o texto não vai implorar por atenção, não vai mandar notificação, não vai te chamar de “comunidade”. não têm botão de seguir. não tem campo para comentários e muito menos botão de compartilhar…
porque vamos falar a real… o substack não é liberdade criativa. é só o velho esquema da praça digital com verniz intelectual. é o novo “seja seu próprio patrão”, só que agora o produto é a própria vaidade encadernada em markdown. a galera virou coach de si mesma. escreve uma frase de efeito, bota um botão de “inscreva-se” e espera que o mundo banque sua epifania semanal com entusiasmo de fã da taylor swift. é o “me patrocina” travestido de jornada criativa.
mas no realidade real, não tem botão de pagar. não tem assinatura, não tem plano mensal, não tem clubinho exclusivo pra quem quiser fingir que é especial. aqui, o conteúdo não é produto. é porrada. é ranhura. é pensamento jogado na mesa como garrafa de rum num boteco de beira de estrada. sem firula. sem estratégia de engajamento. sem pedir desculpa por incomodar.
o substack quer te convencer de que você é especial demais pra ser gratuito. eu digo o contrário… se você precisa cobrar pra que te escutem, talvez o problema seja o que você tá dizendo. ou melhor, o quanto você acredita no que tá dizendo. no realidade real, eu escrevo porque eu não consigo não escrever. e se você chegou até aqui, foi por curiosidade, não por push notification.
o substack é o café caro da escrita. parece sofisticado, vem com espuma, mas no fundo é só mais uma desculpa pra cobrar caro por algo que já devia ser acessível. no realidade real, não tem espuma. tem café preto. forte. amargo. e servido num copo lascado.
bem-vindo ao lado sem glamour da escrita. onde ninguém te cobra pra pensar. onde você lê porque quer, não porque assinou. e se algum dia eu cobrar pra você acessar o que eu penso, pode fechar a aba, desassinar tudo e me chamar de vendido.
até lá, a real continua gratuita. e sempre vai ser mais forte que qualquer newsletter gourmet. e sim, eu odeio newsletter… mas isso é assunto pra outro texto.
sabe o que é engraçado, eu cresci acreditando que artista era tipo uma entidade mágica. alguém que acordava suando genialidade, que ouvia uma nota e escrevia uma sinfonia, que via uma sombra e pintava o inferno. gente tocada pelos deuses, sabe? aí eu cresci. e descobri que, na real, muito artista era só alguém bom de networking, com diploma caro e um monte de amigos que sabiam bater palma no ritmo certo.
e agora que essa tal inteligência artificial entrou na festa, como o convidado que ninguém chamou mas que trouxe bebida melhor e ainda sabe dançar… a turma surtou. a elite criativa, essa irmandade sutil de gente que sempre achou que criar era um direito hereditário, tá em colapso. não porque a ia faz arte. mas porque ela faz arte que rivaliza com a deles. e sem precisar passar quatro anos na faculdade de cinema ou morar num loft com teto de vidro e plantas suspensas.
eu não tenho pena. pelo contrário. tem algo de profundamente poético em ver esse império de cartas ruir com um sopro digital. porque se uma máquina consegue fazer o que você faz e, pra piorar, com mais frescor, mais ousadia e sem esse ranço institucional… talvez você nunca tenha sido o gênio que pensava ser. talvez você só tivesse um bom domínio de técnicas e uma autoestima desproporcional.
e eu não tô dizendo que a ia é artista. longe disso. ela não tem fome. não tem obsessão. não tem angústia. mas ela é um espelho. e quando você se olha nesse espelho e não vê nada que te diferencie da produção automática de um modelo treinado com imagens de banco de dados e roteiros batidos de filme indie… o problema não tá na ia. tá em você.
eu olho isso tudo e penso… não foi assassinato. foi autópsia. e o corpo da arte institucionalizada já tava frio faz tempo. a ia só chegou, abriu o peito e mostrou que ali dentro não tinha coração batendo. só um relógio quebrado, fazendo barulho pra parecer vida.
enquanto isso, o verdadeiro artista… o maluco, o faminto, o obsessivo que cria mesmo quando ninguém tá olhando… segue. suando, errando, rasgando o próprio peito por uma frase, uma imagem, um grito. esses não estão em pânico. esses estão vivos.
o resto era só fachada com moldura cara. e agora a tinta tá descascando. aleluia.
eu olho pra tudo isso e sinto uma mistura esquisita de prazer e nojo. prazer porque finalmente a festa acabou… aquela onde os mesmos de sempre brindavam entre si com taças de cristal, fingindo que o que faziam era sublime, único, inalcançável. e nojo porque, mesmo agora, com as paredes desabando, ainda tem gente tentando vender autenticidade em potinho, com rótulo artesanal.
e aí eu penso… por que tanto medo? será que realmente acreditavam que estavam criando algo inimitável? ou será que sabiam, lá no fundo, que o trabalho deles era só mais um truque de salão, e que bastava aparecer alguém, ou algo, mais rápido, mais ousado, mais eficiente… pra todo mundo perceber?
o que me fascina é o desespero. ver gente que passou a vida rindo de quem tentava entrar no jogo, agora pedindo regras, exigindo fronteiras, suplicando por validação. os mesmos que gritavam “arte é liberdade!” agora querem manual de conduta pra separar o que pode ou não pode ser chamado de criativo. bonito isso. quase poético.
e tem uma coisa que não sai da minha cabeça… quando foi que criatividade virou território privado? quando foi que disseram que só quem entende as referências certas, frequenta os lugares certos, lê os autores certos… pode criar? e agora, quando o portão abre, quando qualquer um com fome e um teclado pode tentar fazer algo que provoque, que cause incômodo, que morda de repente querem fechar tudo de novo?
não dá pra fingir mais. não dá pra bancar o gênio incompreendido quando uma ia treinada em meia dúzia de fórmulas consegue te imitar tão bem que nem você sabe mais o que é teu. e isso dói. claro que dói. é o ego sendo espremido como espinha inflamada, fedendo a insegurança e medo de irrelevância.
e não tem manual pra isso. não tem livro de autoajuda que prepare alguém pra olhar pra própria obra e se perguntar… será que eu era só um algoritmo humano mal disfarçado?
mas ao mesmo tempo, é agora que a coisa fica boa. porque quem ainda tem algo verdadeiro dentro de si, algo que não dá pra copiar, que não cabe em prompt… vai continuar criando. talvez mais sujo, mais raivoso, mais intenso. e é isso que eu quero ver. não o artista seguro, de pose bem estudada e discurso afinado. quero ver o desespero criativo, o risco, o erro. quero ver quem ainda sangra no papel, na tela, na batida.
porque pra mim, só existe uma pergunta que importa, você ainda tem fome? se sim, bem-vindo ao caos. agora é pra valer.
eu lembro exatamente do dia em que percebi que o café tinha morrido. não foi num campo de batalha, nem numa esquina escura de beirute. foi numa cafeteria com parede de cimento queimado, trilha sonora de indie melancólico e um desgraçado me explicando que o espresso que eu tinha acabado de pedir foi extraído a 93,7 graus por exatos 27 segundos, com moagem calibrada a laser e grão fermentado no útero de uma lhama vegana no sul do peru. eu só queria um café. ganhei uma aula de física quântica com sotaque de arrogância barista.
eu sou da época em que café era um soco na cara. uma punhalada no fígado. você acordava, jogava duas colheres mal medidas de pó numa água fervida com raiva e tomava aquilo como quem encara a vida… de cabeça baixa e com estômago vazio. hoje? você entra num desses templos gourmet e se sente num batismo satânico. o barista… esse novo messias da desgraça urbana… vem de avental, tatuagem de planta aromática e uma aura de superioridade transcendental. parece que vai te servir a cura da depressão em forma líquida.
ele pergunta como se estivesse te oferecendo uma experiência transcendental “prefere uma fermentação carbônica de um grão etíope com notas de bergamota e final floral ou um anaeróbico colombiano com acidez brilhante e retrogosto de esperança?” esperança é o caralho. eu quero café. quero amargura, quero verdade, quero o gosto de quem passou a noite fumando derby e ouvindo black sabbath no volume errado.
mas não. agora, se você não sabe o terroir, o clima, o humor da colheitadeira no dia da extração e o signo ascendente do produtor, você é um pária. você não merece aquele gole sagrado. você merece nescafé. e quer saber? às vezes, eu quero mesmo. quero aquele pozinho indigno, que vem num pote de plástico barato, que dissolve com raiva na água e me olha nos olhos dizendo “isso é o que tem. lida com isso.” não tem espuma de leite com florzinha, não tem storytelling de plantação biodinâmica, não tem barista me julgando por querer açúcar. tem só café. bruto, feio, real.
eu não quero um cappuccino desenhado. não quero uma xícara feita por ceramistas japoneses. quero o gosto da rua. o gosto de vida mal passada. mas parece que isso virou crime. parece que hoje, pra tomar café, você precisa passar por um crivo espiritual, uma provação, uma purificação aromática. se você pedir o grão errado, o barista te excomunga. se pedir com leite, ele te cancela no instagram.
mas eu insisto. eu vou continuar tomando café de posto, de máquina velha, de coador de pano imundo. porque, no fim das contas, é ali que tá a verdade. o resto é liturgia gourmet pra gente que confunde cafeína com status. me dá o meu café ruim. e me deixa em paz.
às vezes eu acordo e penso… em que momento a gente decidiu que precisava ter opinião sobre tudo? sério. quando foi que esse pacto silencioso se formou… esse acordo coletivo de que a gente não pode mais simplesmente olhar pra algo e dizer “não sei”, ou melhor ainda, “não tenho opinião formada sobre isso”? virou crime admitir ignorância. é quase uma ofensa pública você não saber o que pensa sobre a política de natalidade da dinamarca ou o preço da soja no mercado chinês.
eu vejo as pessoas falando… melhor, vomitando certezas e tenho vontade de puxar uma cadeira, acender um cigarro que nem fumo e perguntar com aquele ar de deboche bem afiado “porra, e de onde você tirou isso, campeão? foi no terceiro vídeo do tiktok ou no trecho de podcast que você ouviu no banheiro enquanto…?”
porque a real é essa. estamos rodeados por especialistas de banheiro. estudiosos de meia thread. filósofos de 15 segundos. todo mundo com uma opinião engatilhada, uma certeza absoluta na ponta da língua, mas se você cavar um milímetro abaixo da superfície, o que encontra é… nada. vazio. um abismo de ignorância ensaiada, enfeitada com hashtags e jargões reciclados de influencers com voz calma e roupa neutra.
eu tô cansado. cansado de tanta opinião e tão pouca curiosidade. cansado dessa necessidade desesperada de parecer inteligente. de ter sempre algo a dizer, mesmo que seja uma bobagem mal articulada com palavras emprestadas de alguém mais esperto.
me incluo nessa, claro. não vou posar de monge zen no topo da montanha. eu também já opinei mais do que devia. já caí na armadilha do ego inflado, do textão inflamado. mas ao menos eu tive a decência de reconhecer que, muitas vezes, eu estava falando merda.
hoje eu prefiro o silêncio. prefiro observar. prefiro admitir que não sei porra nenhuma sobre quase nada.
só que admitir isso exige coragem. e essa é uma moeda em extinção.
porque se você admite que não sabe, perde palco. perde público. perde curtidas, seguidores, relevância. e deus nos livre de sermos irrelevantes nessa era de selfies com legenda profunda e engajamento programado.
a verdade é que a gente tá todo mundo atuando. viramos personagens de nós mesmos. e pior… roteiros rasos. diálogos fracos. a série tá ruim e ninguém tem coragem de cancelar.
cada feed é um teatro. cada story é uma performance. a gente vive com medo de sumir, então fala, grita, opina, se impõe… mesmo que não saiba nem o que tá dizendo.
é como assistir uma peça onde todo mundo quer ser o protagonista, mas ninguém sabe o enredo.
e é aí que mora o desespero, essa urgência por parecer profundo enquanto flutua na superfície. um bando de náufragos com pose de navegadores.
então não, eu não vou engolir essa pose de intelectual instagramável. não vou fingir que essa avalanche de opiniões é sabedoria. é ruído. é excesso. é vaidade disfarçada de consciência.
e se você acha que ter opinião sobre tudo é ser inteligente, talvez precise de uma temporada no silêncio. ou num bar sujo de esquina. ou numa cozinha de verdade, com faca cega e suor escorrendo.
porque só aí, entre o calor, o caos e o desconforto, a gente começa a entender o que é profundidade.
eu acredito em tatuagem como quem acredita em fogo, porque é isso que ela é… fogo ancestral, ainda queimando, reinventado em agulha, tinta e cicatriz. cada traço, cada linha, cada ponto de dor é um elo com aqueles que vieram antes. não os dos livros de história, mas os verdadeiros… guerreiros, curandeiras, xamãs, piratas, escravos, punks, putas, todos os malditos que ousaram existir fora da norma e marcaram seus corpos como se a pele fosse altar, e era.
tatuagem é o grito dos que nunca pediram permissão. é a arte dos que escolheram o corpo como manifesto. é pintura de guerra numa sociedade que quer todo mundo limpo, polido e morto por dentro. e a gente não. a gente quer o oposto. a gente quer o sujo, o imperfeito, o autêntico. quer sangue, suor e alma misturados com tinta barata e dor que vicia.
porque tatuagem é isso, vício de verdade. quem faz uma, não para. porque descobre o segredo. descobre que a dor da agulha acorda coisas que estavam mortas. cada sessão é um batismo. cada risco é uma oração pagã. cada símbolo é um espelho que grita… “você ainda sente alguma coisa, porra!”
eu acredito em tatuagem porque ela nunca mente. o que tá na pele, tá na alma. é luto que virou arte. é amor que virou desenho. é fé que você não consegue explicar, mas precisa carregar. é a âncora no meio da tempestade. é o caos ordenado de um coração que se recusa a ficar quieto.
e não importa se você tatuou um símbolo tribal, uma caveira mexicana, um desenho tosco feito no fundo do quintal. o que importa é que você marcou. você se comprometeu com a sua própria existência. você teve a audácia de dizer “eu sou isso aqui, contraditório, intenso, suado, imperfeito, mas meu”.
tatuagem é um foda-se com alma. é arte viva em movimento. é identidade em alto-relevo. é história escrita em carne, uma língua que só os iniciados entendem. e quem entende… reconhece de longe. tatuado reconhece tatuado. é pacto silencioso. é irmandade de sobreviventes.
porque só quem já sangrou por escolha entende o valor de uma marca. só quem já sentiu a agulha entrando devagar, riscando memória na carne, entende que isso aqui é mais que moda. é legado.
então sim, eu acredito em tatuagem como quem acredita em mágica suja. porque é isso. alquimia punk. ritual moderno. e se não entende, tudo bem. não é pra entender mesmo. é pra sentir. é pra viver. é pra carregar…
eu não quero um celular que faz tudo. eu quero máquinas que fazem uma coisa só… e fazem bem. ponto.
me dá um ipod só pra música. uma câmera só pra fotografar. um gravador só pra som. me dá aparelhos com propósito. com função clara. com botões de verdade e alma mecânica. não quero esse trambolho moderno que faz trinta coisas ao mesmo tempo e nenhuma direito. porque quando tudo é função, nada é essência.
o celular é o fast food da tecnologia. parece prático, parece completo, mas é um monte de atalho disfarçado de inteligência. você tira uma foto? claro. com pressa, com filtro, com a câmera suja de dedo. ouve música? sim, enquanto responde e-mail, enquanto posta story, enquanto o algoritmo decide o que você gosta. nada é inteiro. tudo é distração.
mas quando eu pego um ipod velho, um daqueles tijolos com click wheel e alma de jukebox portátil, eu tô só ouvindo música. só isso. e isso basta. eu escuto o disco inteiro. na ordem. com atenção. como se cada faixa fosse um ritual. e é. cada aparelho desses é um templo. um altar pra uma experiência específica. pura. limpa. sem interferência.
a câmera? ah, a câmera. aquela máquina que só serve pra fotografar. que não notifica, que não vibra, que não tenta me vender nada. eu aponto, enquadro, clico. e pronto. sem dez filtros. sem IA me sugerindo ajustes. só a luz, o olhar, o momento. a foto. a porra da foto. e não uma selfie apressada entre duas mensagens de trabalho.
esses equipamentos mono função têm peso. têm textura. têm dignidade. você sente o clique. sente o botão responder. sente que existe uma conversa ali entre homem e máquina. não é tudo touchscreen liso e anônimo. é físico. é tátil. é íntimo.
e o melhor… eles acabam. têm fim. têm botão de desligar. o ipod não vai te lembrar de beber água. a câmera não vai te mandar notificação de clima. eles não tentam te salvar. só cumprem seu papel, com simplicidade e precisão quase poética.
eu prefiro isso. porque cada máquina dessas me devolve uma coisa que o celular roubou… atenção. foco. intenção. fazer uma coisa por vez, mas fazer direito. como deve ser.
então sim, eu ando com três ou quatro aparelhos separados. e adoro. porque quando cada coisa tem sua função, cada momento tem seu sentido. e viver, no fim, é isso… prestar atenção no que se está fazendo.